sexta-feira, 18 de abril de 2014

3476) Roubado não é bom (18.4.2014)




Continuam se fazendo sentir, Brasil afora, os abalos sísmicos provocados pela decisão do Campeonato Carioca de domingo, quando o Vasco vencia por 1x0 (resultado que lhe dava o título) e o Flamengo empatou no último instante, tornando-se campeão com um gol que, minutos depois, todo mundo viu que foi feito em impedimento. Dizem (eu procurei, mas não achei as imagens) que nas comemorações pós-jogo o goleiro Felipe, do Fla, teria dito: “Roubado é mais gostoso”. Ou seja, ganhar praticando uma injustiça é mais divertido, certamente porque eleva ao quadrado o desespero e a revolta dos adversários. Esse traço de muitos torcedores de futebol (não só aqui; creio que é assim no mundo todo) revela o que o esporte significa para eles. Significa a chance de tripudiar sobre um adversário, de exercer a “hubris”, a arrogância dos vencedores, para quem não basta derrubar o outro no chão, precisar pisar na cara, também.

Eu não acho uma vitória assim mais gostosa. Gostosa é quando o adversário faz um gol em impedimento, e depois a gente vai lá, faz um gol legal e ganha o jogo. Aí sim, é bom de esfregar a vitória na cara do outro. O gol roubado é um privilégio, e eu torço pelos desprivilegiados (inclusive para expurgar meus privilégios de sexo, de classe e de cor; quem foi que disse que agnóstico não crê em pecado original?). Vitória gostosa é virar para 3x2 um jogo que estava 0x2. É ficar com um a menos e derrotar o outro time. É ganhar na casa do adversário.  É precisar de um golzinho durante o jogo inteiro e fazê-lo nos acréscimos.  Ou seja: a vitória é mais gostosa (para mim, e acho que para alguns outros torcedores) quando o privilégio ou a vantagem estão todos do lado oposto, e mesmo assim a gente vai lá e passa por cima.

Nelson Rodrigues (ou seria Mário Filho?) tinha um personagem para quem a vitória só valia se o gol fosse de mão. Há pouco, um saite publicou uma matéria apontando 12 erros de arbitragem em favor do Brasil em Copas do Mundo (acertou em todos). Parece que existe em nós aquele complexo do sujeito que, mil vezes roubado, precisa roubar também para convencer a si mesmo de que não é um imbecil, não é um banana. Roubando, podemos enfim curtir aquele momento breve de esperteza que leva tantos otários mais cedo para o buraco.  

O futebol é um reflexo da nossa sociedade, onde (para alguns) só existe ascensão social através do privilégio.  O gol impedido dá ao torcedor a ilusão (porque se não for ilusão, é o quê?) de que daquela vez o grupo de que ele faz parte estava do lado dos poderosos, dos privilegiados, dos que podem fazer qualquer coisa porque acima deles não há ninguém para puni-los.



3477) Escrever no Brasil (19.4.2014)




Numa discussão sobre ficção científica brasileira, com dois ou três amigos, me queixei do pouco que o Brasil é retratado em histórias de FC nacionais. Todo mundo ambienta suas histórias em outro país ou outro planeta, e histórias ambientadas no Brasil são proporcionalmente poucas. Por que?  Alguém questionou: “Peraí, que dirigismo é esse? Então o escritor é um funcionário, tem que obedecer um Plano Quinquenal de Romances Futuristas?  O autor não é livre pra criar? Tem que produzir dentro de uma fórmula fornecida pelos críticos, ou pelo governo?” 

A crítica é procedente, e concordei. Cada sujeito, quando se senta para escrever, é livre para ambientar suas histórias onde bem quiser. Dei como exemplo eu mesmo: nos 19 contos de meus dois livros de FC, há dois que só poderiam ser ambientados (como são) no Rio de Janeiro. São dois contos sobre um Rio do futuro (“Príncipe das Sombras” e “Jogo Rápido”). O resto, ou é em outros planetas, ou numa cidade que poderia ser qualquer uma. (Há um conto, “Oh Lord, won’t you buy me”, ambientado em São Paulo, mas sua primeira versão, que escrevi nos EUA, era ambientada em Chicago, e o conto era exatamente o mesmo.)

O que acontece é que o questionamento sobre ambientação não deve ser feito aos indivíduos, e sim à uma geração inteira dos autores, depois dos livros escritos.  Cada um de nós, autores, é livre para ambientar suas histórias onde quiser, mas nós, críticos, temos o direito de estranhar se somente uma fatiazinha desses livros brasileiros diz respeito ao Brasil. Não se pode cobrar nada de cada escritor (cada um é livre, repito) mas se o país está conspicuamente ausente dessa produção literária isto é um sintoma cultural que não pode ser ignorado.  O crítico tem a obrigação moral e intelectual de perguntar por que é assim.

Um fato assim indica um viés, uma preferência. É mais fácil escrever sobre Marte do que sobre o Brasil?  Para mim, pelo menos é.  Se eu pudesse ambientar todas as minhas histórias em Londres na década de 1890, ô beleza, eu escreveria um conto por semana, porque não existe ambiente literário mais cômodo (pra mim) do que esse.  Doses cavalares de Conan Doyle, Stevenson, Chesterton, James, etc. me deixaram à vontade para passear literariamente por essa cidade (que nem conheço, aliás).  Ambientar no Brasil me leva a uma contaminação de realidade que, pra quem dá importância à verossimilhança externa do que escreve, chega a ser paralisante. É como pedir a um chargista para pintar a Capela Sistina.  O Brasil, como cenário minimamente verossímil, parece estar além da capacidade de muitos autores, inclusive eu mesmo.

(Por distração, este artigo, que é do "Jornal da Paraíba" do sábado 19 de abril, foi postado aqui neste blog no dia 18, sexta. A postagem correta referente à a sexta 18 é "3476) Roubado não é bom".)