sexta-feira, 28 de março de 2014

3459) É o jeito (29.3.2014)




Sim, o jeito é manter a cabeça fria, o olho focado, a mão pronta, os pés afastados, os nervos zumbindo acesos como um cabo de alta tensão de Itaipu.  

Cruzar correndo a superfície do lago, confiando na tensão superficial daquela água pouco sujeita a ondas. 

Saltar na hora do atropelamento para sair do chão no primeiro impacto e cair depois no vácuo do carro, que já seguiu seu caminho.  

Driblar uma bala perdida não é mais difícil do que fintar um miúra abufelado.  Não tem perigo que a gente não consiga eludir, não tem catástrofe que não se possa atenuar, não tem beco sem saída onde não haja uma janela baixa que alguém deixou só encostada, não tem estava-escrito que a gente não possa pedir vistas no processo e reabrir um questionamento.

É o jeito. 

Seguir em frente como a água do rio, escorrendo por onde der passagem, ou como a ave de arribação que não tem a mínima idéia de como está se orientando mas sabe que um dia chega.  

Claro que a batalha é ferrenha e muitos tombam pelo meio do caminho, e é bem provável que eu tombe também, só que não vou tombar aqui, vou tombar, se for o caso, lá depois daquela volta da estrada, depois daquela montanha bem azulzinha, mas aqui, não.  

O jeito é teimar, o jeito é continuar respirando, antes de tudo o mais, e o fato de que hoje respirei em paz o dia todo resolveu estes 95% dos meus problemas, então que venha o restante.

O jeito é tentar não dar murro em ponta de faca, não abrir janelas na parede a golpes de cabeça, não pular do prédio sem reparar se a providencial carroça-de-feno está estrategicamente colocada no ponto exato.  

Também é preciso saber tergiversar, sofismar, botar panos quentes, tapar o sol com uma peneira, ficar acordado a noite inteira, fazer redemunho de carrossel. Jeito pra tudo tem, a vida é uma bolinha que vem e você tem só que ficar rebatendo, a vida toda ela vindo e você rebatendo, porque quando erra só erra uma vez.

Jeito. Quando você menos espera, em pleno começo do Dilúvio, você se lembra que tinha feito uma arca trinta anos atrás, só pra se divertir durante uma tarde!..  

Você cai do arame rumo ao chão sem rede mas alguém rebobina e você sobe às avessas: era um filme, e você não existe. 

Mesmo na jaula dos leões ou no porão dos abutres haverá alguma porta secreta ou gaveta com fundo falso, e você escapa para um universo mais negociável. 

Ninguém pode garantir que o jeito significará necessariamente a salvação, mas o fato é que pra tudo tem jeito.  Sempre tem a terceira face da moeda, a serrilhada. Tem o rio reto, tem o pulo do gato e o salto do cavalo, tem o sexto lado do pentágono e a nobre arte de avançar mais uma casa no tabuleiro.


3458) 1984 de Orwell (28.3.2014)




Reli agora este livro que eu tinha lido apenas uma vez, em 1971, e fiquei pasmo: era exatamente o mesmo livro que eu lembrava.  Claro que durante esse período o cinema (Michael Radford) e o rock (Rick Wakeman) reavivaram a memória, mas não é qualquer livro que grava as coisas assim na memória da gente, como cinzel no metal. 

Nineteen Eighty-Four (o título original é por extenso) já foi apontado como o livro mais depressivo, ou mais pessimista, de toda a literatura, e até como “o livro que matou George Orwell”, pois o autor, trabalhando em condições difíceis, viu sua tuberculose piorar ao longo de 1948, quando concluiu o livro, publicado em junho de 1949.  Ele morreu em janeiro de 1950.

Para muita gente a obra de Orwell foi profética ao criar conceitos como o do Big Brother, que deixou de ser simplesmente a pessoa do ditador paternal, tipo Stálin ou Getúlio, e tornou-se sinônimo da sociedade supervigiada, com uma câmara-tela espiã em cada aposento. (Não literalmente – mas hoje sabemos que qualquer atividade eletrônica nossa é tão sujeita a espia quanto o diário manuscrito que Winston Smith escondia em seu apartamento, na esperança de que ninguém o revistasse.)  

O reality show que adotou esse nome acabou dando-lhe uma curiosa e atual conotação.  O Big Brother não é apenas alguém que vigia você. É alguém que faz você querer vigiá-lo o dia inteiro, passar o dia pensando nele, na programação dele, e se viciar nas imagens oferecidas por ele 24 horas por dia.

Criação de Orwell, a palavra “duplipensar” (doublethink) é muito citada mas não se incorporou à nossa linguagem, se bem que o hábito do duplipensamento seja cada vez mais generalizado. Sem duplipensar ninguém sobrevive. 

Políticos que mudam de lado e de credo com a maior das convicções, e num estalar de dedos “trocam o sinal” de seus aliados e adversários. Senhoras e senhoras respeitáveis que às escondidas mantêm vícios proibidos (drogas, sexo, etc.). Funcionários públicos trabalhando para um governo que desaprovam. 

Casais que traem e escondem.  Amigos que mentem e escondem.  Pais e filhos que mentem e escondem uns dos outros.  Isso é invenção dos tempos modernos?  Não: é da natureza humana, e volta em qualquer sociedade decadente, ou sob pressão. 

Por um lado, é a hipocrisia (e a cautela) de quem não pode revelar o que pensa. Por outro, é a disponibilidade permanente que se induz na população para que abrigue na mente idéias opostas. 

O povo tem que estar pronto para achar que “X” é bom e que “X” é ruim. Nunca se sabe de qual das duas opiniões o Big Brother vai precisar para seus objetivos, que, de qualquer modo, ninguém jamais saberá quais são.