terça-feira, 11 de março de 2014

3443) "Inside Llewyn Davis" (11.3.2014)



É um daqueles filmes dos irmãos Coen onde um artista desnorteado e sincero vive a dar com a cara nas portas do mundo (Barton Fink), ou uma daquelas tertúlias etnológicas pela música rural norte-americana (E aí, meu irmão, cadê você?).  Um daqueles filmes cheios de piscadelas para aficionados e ao mesmo tempo daquelas terríveis rodovias enxergadas através do parabrisa de um carro à noite, quando sentimos que naquele momento tudo aquilo é real e mesmo sendo um filme qualquer coisa pode acontecer.

Llewyn Davis é um cantor de música folk que percorre os bares do Greenwich Village num daqueles momentos mágicos do espírito, a New York de 1961, semelhante à Londres de 1890, à Paris de 1925, ao Rio de Janeiro de 1958. Um foco cultural aceso numa cidade capaz de lhe ser receptiva. O Village abrigou poetas beatniks, teóricos da contracultura, cineastas de vanguarda, mas os cantores de protesto ou de tradição étnica (aqueles irlandeses de suéter, que conseguem fazer uma consoante ter sonoridade interna equivalente à de uma vogal) também são a cara daquela época.  Ficou Bob Dylan como o mais famoso, mas basta ler as Crônicas dele próprio: ele lembra músicos dos bares daquele tempo que talvez não tenham nem verbete na Wikipedia.  Samuel R. Delany também conta em suas memórias que por pouco não recitou poesias num bar na mesma noite em que um tal de Bob Dylan ia cantar. Esses filmes de época são sempre pedaços da biografia de alguém, estão ligados à vida pessoal de alguém. 

Llewyn Davis é talentoso, é bom sujeito, mas vive metendo os pés pelas mãos e dando com os burros nágua. Curiosamente, este filme me lembrou o Não Estou Lá que estilhaçou a biografia de Bob Dylan em vários personagens específicos.  Llewyn Davis é um daqueles Dylans iniciais, parelho ao negrinho que se diz chamar Woody Guthrie e ao personagem cowboy-de-sapatos de Christian Bale. Minha teoria é de que existe mesmo um arquétipo chamado O Bardo, e cada um desses caras traz algumas canções dele. Somos heterônimos dele, mas na verdade é ele quem escreve tanto a obra do poetinha romântico quando a do profeta apocalíptico. Uma espécie de Mega-Fernando-Pessoa, que escreve tudo, e tem alguns bilhões de heterônimos.

Cada verso da gente foi escrito pelo Bardo, usando o rudimentar instrumento que é nosso estilo pessoal, nossa nitidez e limitação. O Bardo precisa de vários transmissores para chegar aos humanos. Todos os poemas de qualquer poeta são do Bardo, que por consequência é o próprio Llewyn Davis. Uns vão em busca do Hall of Fame, mas aí tem um que consegue entrar na Marinha Mercante e consegue enfim descobrir quem é.