terça-feira, 4 de março de 2014

3438) Fermata (5.3.2014)



(escultura de Bernini)

A lágrima de mármore está fixa no ar, imóvel, solta.  Eu passaria uma aliança em torno dela, se tivesse. As serpentinas de mármore dos cabelos das dríades, retorcendo-se em cachos revoltos, leves, quase flutuando. A abelha que mal roça a casca lisa do fruto. A folha oscila ao lado de outras folhas e a posição de cada uma delas evoca aquele ir e voltar.

O tempo parou, tudo que era carne virou Carrara, ou granito, ou pedra sabão.  Um instante atrás tudo esvoaçava, tudo tremulava, tudo fluía, o mundo era um concerto de ondas vibratórias, a carne, a folha, a nuvem, o cabelo, a sombra arrastada pelo vento.  Mas agora tudo está freezado no espaçotempo: o pólen esvoaçante das flores, os respingos e os borrifos das brincadeiras das náiades nas pedras ensolaradas do riacho. Cada microgota dessa água que espadana é de pedra esculpida, tão fincada na paisagem quanto um prego.

O tempo parou. Como uma alavanca puxada para trás, encaixada numa ranhura, e presa ali.  Pronto, acabou-se, aquilo está lá naquele ponto e dali não vai sair jamais.  No frontão guerreiro, o aço de mármore fende os músculos de mármore, rompendo tudo no interior daquele corpo, cujo escudo de defesa estava anormalmente erguido, claramente porque o artista entendia pouco da luta que retratava aos bocejos. Seus guerreiros sonham vitórias de mármore enquanto os outros gemem sua dor de mármore e morrem sua morte de mármore.  
O caçador na orla da mata.  A corça no seu súbito salto, no seu susto, sua esquiva. Tudo em mármore. Aqui está o arco ainda tremendo, a corda ainda vibrando, a flecha suspensa em algum ponto da sua geodésica vacilante rumo ao alvo. Sobre esses olhos de mármore sem pupila, chovem imagens de mármore que ele guardará para sempre em sua memória imune à erosão. Poucas vezes a matéria parece tão indestrutível, tão protegida do esfarelamento em grãos discretos, partículas soltas..

Que arte superior em magia a todas as outras seria uma escultura em pedra que paralisasse assim o tempo, não só o tempo do mito retratado, mas o tempo da pedra. Uma arte escultórica que suspendesse a pedra solta no espaço, de modo que por ter se tornado escultura ela deixasse de ser pedra e pudesse pairar assim, como uma bolha de matéria soprada pela mente, esvoaçando parada, sustentada magicamente pelo poder de ter se tornado algo além da carne e de Carrara.  Que, assim como os frutos de mármore nunca apodrecem, as lágrimas de mármore nunca caíssem no chão.  Uma arte em que o corpo mais efêmero se tornasse eterno e o corpo mais pesado se tornasse imponderável. Uma arte de esculpir em que toda a matéria fosse feita de luz.


3437) "The Dream Years" (4.3.2014)



Este romance de Lisa Goldstein, de 1986, é uma fantasia histórica que envolve viagens no tempo, que acontecem sem nenhuma tentativa de explicação centífica.  Meu interesse nele surgiu pelo fato de ser uma exploração literária das atividades do grupo surrealista liderado por André Breton, na Paris dos anos 1920.  Leio tudo o que acho de interessante a respeito do surrealismo.  Biografias, histórias e análises são numerosas, mas, curiosamente, há poucas obras de ficção.

Naquela década Paris fervilhava com o surrealismo (que se concentrava mais na literatura e artes plásticas), a vanguarda cinematográfica (aliás, próxima do surrealismo) de Jean Epstein, Germaine Dulac, René Clair, Man Ray, etc., a pintura modernista, principalmente o cubismo de Picasso e Braque... Para não falar na agitação política de comunistas e anarquistas. Era uma cidade não muito grande pelos padrões atuais: um pouco menos de três milhões de habitantes (curiosamente, nunca passou disso). Um caldeirão de criação cultural como poucas vezes se viu.

No livro de Goldstein, o fictício protagonista é Robert St. Onge, poeta que convive no círculo de André Breton, Antonin Artaud, Paul Éluard, Louis Aragon, etc.  Vivem todos naquela pindaíba celestial, circulando pelos cafés e bulevares. Compõem poemas coletivos, contam sonhos, promovem pequenos “happenings” improvisados.  A palavra de ordem é libertar a mente das cadeias da linguagem, da moral, da educação burguesa; se possível, libertá-la inclusive das leis do espaço e do tempo.  E Robert começa a se ver transportado, através de uma mulher misteriosa, para a Paris de 1968, cheia de manifestações, bombas, barricadas, repressão policial.

São dois momentos diferentes e fascinantes da cidade, e a transição, meio mágica, aparentemente gratuita, lembra a de Meia Noite em Paris de Woody Allen: “As ruas se alongaram até o infinito e depois se contraíram. Ele esperou que elas ficassem sólidas novamente.”  Nessa aventura futurista, Robert St. Onge entra em choque com seu melhor amigo, André Breton (sempre ardoroso e dono-da-verdade) e se apaixona pela moça que veio do futuro para buscá-lo.

É um livro leve e sem grande aprofundamento; apesar de ter sido marquetado como adulto, eu o consideraria uma boa introdução ao Surrealismo para o público juvenil.  Lisa Goldstein já ganhou alguns prêmios importantes, inclusive um National Book Award para The Red Magician (1982), e publicou alguns contos interessantes na Asimov’s Magazine. The Dream Years reconstitui, em seu melhores momentos, a vida boêmia dos surrealistas, sobre a qual, ao que eu saiba, poucos romances foram escritos.