sábado, 25 de janeiro de 2014

3405) Traduzindo Kafka (25.1.2014)



A nova tradução de A Metamorfose de Franz Kafka para o inglês já vem cercada daquelas discussões de minúcias que muitos leitores desdenham, mas quem traduz é capaz de passar ali a noite inteira. Isso se torna ainda mais interessante quando o original vem numa língua que a gente não conhece, como é o caso, pois Kafka, apesar de tcheco, escreveu sua obra literária em alemão.

A dificuldade tradutória já começa no título: Die Verwandlung, em alemão, não sugere uma mudança natural de estado como acontece com o termo inglês (e português) “metamorfose”. Não é algo espontâneo e/ou inevitável. É uma mudança inesperada.  A tradução de Susan Bernofsky é discutida nestes termos numa resenha de Rebecca Schuman na revista Slate (aqui: http://slate.me/1kqDJIq), onde a jornalista afirma que “Bernofsky chega tantalizantemente próxima de fazer o que nenhum tradutor conseguiu até hoje: obter uma tradução aproximada da 19a. palavra do texto, ‘Ungeziefer’.” 

O x do problema está nesse bendito Ungeziefer.  Kafka começa assim: “Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheueren Ungeziefer verwandelt.” 

“Quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de inseto." 

Na tradução inglesa de David Wyllie, isto vira: “One morning, when Gregor Samsa woke from troubled dreams, he found himself transformed in his bed into a horrible vermin.”  

E a tradução de Bernofsky, agora, diz: “When Gregor Samsa woke one morning from troubled dreams, he found himself transformed right there in his bed into some sort of monstrous insect.”

Para a tradutora, a expressão “uma espécie de” (some sort of), ausente no original, sinaliza a falta de especificidade, proposital, de Kafka. Samsa não vira barata, como se diz por aí. Kafka não usou as palavras alemãs para inseto, percevejo, besouro ou barata (Insekt, Wanze, Käfer, Kakerlak).  “Ungeziefer” designa em Médio Alto Alemão, “criatura imprópria para sacrifício”, criatura impura, repulsiva, não-bem-vinda numa casa. Modernamente acabou sendo identificada com pragas domésticas, insetos de muitas pernas. É um termo não-específico, daí Bernofsky usar “uma espécie de”, que não aparece no original. (E que vem num contraste com o categórico “right there in his bed”, “bem ali na sua cama”).

Isto é apenas um exemplo de palavra em sua tradução popular e tradução literária.  No popular, “barata” é o bastante para dar uma idéia da história.  Para chegar, contudo, à fidelidade literária com o que disse o autor, é preciso às vezes subir a montanha dando voltas.