quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

3681) Curso de sonambulismo (11.12.2014)




“Acordei misturado às noções que a noite fabrica” (p. 265).  Jurandir, narrador de O sonâmbulo amador de José Luiz Passos (Objetiva / Alfaguara, 2014) é um tipo particular de narrador literário não-confiável.  Não é o narrador que mente, é o que não sabe. Não é o que quer esconder de nós o seu passado, é o que deu um jeito de escondê-lo de si mesmo.  Preso a uma existência humilhada, Jurandir tem um defeito físico que ele deu um jeito de, em certos momentos, usar como pretexto para um ritual de prazer.  Sem sonhos de grandeza, ele arruma um jeito de se alegrar com as pequenas coisas, a sensação de conforto de uma rotina que ele é capaz de repetir, um fio de futuro em que pode confiar.

Me pareceu, também, a voz de um ex-drogado (ele toma remédios, quando interno na clínica), alguém que obedece ordens com docilidade, sem discutir, sem precisar entender, mas que de repente tem uns assomos de onisciência e faz a última coisa que se esperaria dele.  Jurandir recorda metodicamente os mesmos fatos, procurando alguma coisa que existia neles e não existe mais.  O sexo com a esposa e com a namorada lhe traz um pouco disto; o amor físico é “o canal rumo a um tempo em que somos apenas o que somos, sem arrazoados nem idéias que nos estraguem a hora.  É só assim que esquecemos do passado.” (p. 243).  

Nesses momentos ele lembra Milgrim, o ex-drogado usado por William Gibson em Território de Espiões (2007) e Zero History (2010), o homem com um buraco na memória (“Meus últimos dez anos estão em modo não-linear, ainda estou tentando organizar isso tudo”).  O mundo de Milgrim é o aqui-e-agora. “Qual fora a última vez em que estivera em Paris? Era como se nunca tivesse ido lá.  Alguém tinha ido, alguém com vinte-e-poucos anos.  (...) Um Eu mais novo, hipotético. Antes que as coisas tivessem começado a não correr bem, depois a piorar, depois piorar ainda mais, até que a essa altura ele deu um jeito de se ausentar a maior parte do tempo.  Tanto quanto era possível.”

Jurandir, ao contrário, remexe o tempo todo no passado, essa coleção de ruínas que nos visitam de vez em quando.  Ele descreve em câmera-lenta, degustando detalhes, o acidente com carrinho de rolimã que o deixou manco desde a infância; mas o acidente que vitimou seu único filho tem que ser remontado pelo leitor a partir de meia dúzia de referências passageiras, espalhadas ao longo do livro.  Jurandir é meio míope quanto a si mesmo; até acha as coisas, mas somos nós que dizemos o que ele tem na mão. Como um sonâmbulo, ele anda em cima do muro sem cair, fala sem escutar, emenda os cacos da vida apenas colocando-os lado a lado.





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