quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

3698) Outros adeuses do ano (31.12.2014)



Tive poucos papos com Eduardo Coutinho, um dos maiores documentaristas brasileiros, mas um ficou na História. Eu estava em Campina Grande e me liga Rômulo Azevedo avisando que Coutinho estava na cidade, com equipe. Estavam filmando na Paraíba, o dia era de folga, e queriam saber “o quê que rola”. Eu anunciei: “Show de Braulio Tavares no Buracão, o bar de Noaldo Nery, Campina inteira conhece, atrás da AABB.” Vai a equipe (Edgar Moura é testemunha), eu canto as lorotas de sempre, toma-se a cerveja de sempre, conversa-se o que se conversa entre cinéfilos meio de-fogo e embalados pela música.  Nem Coutinho nem ninguém quis revelar o que estavam filmando. Dois anos depois, eu soube: era Cabra Marcado para Morrer.

O tempo silenciou André Carneiro, mas só metaforicamente.  Ele, que publicou aos 85 anos um volume de contos inéditos com mais 600 páginas, deixou também inéditos, aos 92, textos suficientes para mais uma coletânea.  André foi poeta, fotógrafo, editor, hipnotizador, artista plástico, e um dos grandes autores da Primeira Onda da ficção científica brasileira, nos anos 1960. Até o fim, esteve produtivo e lúcido. Via a ficção científica como uma parte especialmente brilhante de um vitral muito grande, muito complexo, feito de imagens e de histórias. Tinha razão.

Hermano José foi o primeiro diretor que montou na Paraíba minhas primeiras peças de teatro, escritas quando eu morava em Salvador: Quinze Anos Depois” (com Ranulpho Cardoso Jr. e Socorro Brito, ou Numa Ciro) e Trupizupe, o Raio da Silibrina, também chamada O Casamento de Trupizupe com a Filha do Rei.  Eu e Hermano tínhamos um senso de humor e de sátira muito parecido.  Ele era sempre um gentleman, e defendia um teatro devastadoramente sarcástico, cheio de raiva e de riso.  Alguém que sempre me dizia: escreva mais, todo mundo gosta do que você escreve. 

André Setaro foi o primeiro cinéfilo com quem engatei um diálogo ao botar os pés em Salvador em 1973, para assistir a II Jornada Nordestina de Curta Metragem.  Poucos anos depois eu já estava morando lá, escrevia sobre cinema do Jornal da Bahia, e André na Tribuna da Bahia.  Ditávamos cátedra um para o outro bebendo e pontificando, sem levar nada muito a sério, a não ser os filmes propriamente ditos. Fui embora da Bahia, sei lá mais por quê.  Depois do Facebook, nos reencontramos.  Conversávamos sobre Hitchcock e Buñuel, sobre Brigitte, sobre cigarro. André era um cineclubista de causas impossíveis.  Saiu a notícia de sua morte. Depois, a página do Facebook continuou a ser alimentada, com posts que pareciam dele.  Para mim, André Setaro é o primeiro habitante da Singularidade.




terça-feira, 30 de dezembro de 2014

3697) Mais adeuses do ano (30.12.2014)



Moacy Cirne foi um dos nossos grandes estudiosos das Histórias em Quadrinhos, e ajudou a dar respeitabilidade ao gênero no meio acadêmico. Cinéfilo, foi também o criador, na UFF de Niterói, do primeiro curso acadêmico de ficção científica em nossa universidade. Foi um dos meus vizinhos nordestinos no Flamengo, primeiro, e depois em Laranjeiras. Redigia uma folha-volante “jomardiana”, o Balaio Incomum, que distribuía com os alunos, cheia de poemas, provocações políticas, versos fesceninos do lendário Chico Doido de Caicó. Vou rever A Aventura de Antonioni, seu filme favorito, e pensar para onde vão as pessoas que não vemos mais.

No Curso Clássico, no turno da noite no Estadual da Prata em 1969, um dos colegas mais bem-falantes da turma era um “cabôco” moreno, magro, de testa enorme, sorriso confiante e voz metálica. Anos depois, quando me aproximei dos cantadores que frequentavam o Bar de Seu Manu, lá estava ele, agora com uma viola do lado.  Apolônio Cardoso formou-se em Direito, mas para mim foi sempre o poeta. Voltamos a nos cruzar na redação do Diário da Borborema, onde ele tinha uma coluna periódica sobre cultura popular.  Faleceu nas vésperas do Natal; eu não o via há anos. Em alguma caixa de fitas cassete em minha casa, a voz metálica ainda canta sextilhas.

Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos o mundo parava para a gente ouvir a radionovela As Aventuras do Flama. Eu e minha irmã Clotilde colecionávamos rótulos do Drops Dulcora (“quadradinhos, embrulhadinhos um a um”) para entrarmos no clube do Agente Secreto. O Flama era uma espécie de Batman que combatia tanto gangsters quanto monstros-robôs, acompanhado por Zito, Eliana, o Raposa, o Comissário Lawrence, Bolão...  Era tudo criação de Deodato Borges, que também criou uma revista em quadrinhos com as aventuras dele. Deodato, tal como Péricles Leal (criador do Falcão Negro), foi um pioneiro paraibano de quadrinhos e de novelas num mundo de pulp fiction. As últimas imagens que vi dele foram desenhadas por seu filho Mike Deodato, retratista de heróis.

Como tantos craques do futebol paraibano, Zezinho Ibiapino brilhou tanto no Treze quanto no Campinense. Era um meio-campista atarracado, com um domínio de bola impressionante, especialista nas cobranças de falta com folha-seca e naqueles lançamentos de 40 ou 50 metros que geralmente associamos a Gérson ou Rivelino. Uma vez brigou com a diretoria do Campinense, foi a julgamento, meu pai foi o advogado dele e conseguiu absolvê-lo e trazê-lo para o Treze, onde ele acabou sendo campeão em 1966.  Onde quer que eu o encontrasse pelas ruas de Campina Grande, ele me cumprimentava: “Diz, fí de Nilo”.


domingo, 28 de dezembro de 2014

3696) Reescrever (28.12.2014)



(manuscrito de George Orwell para 1984)

John Casey é um romancista com alguns livros premiados, e reuniu num volume (Beyond the First Draft: The Art of Fiction) reflexões a partir de suas palestras nos Encontros de Escritores de Sewanee, dos quais ele participa.  Que me perdoem os colegas críticos e teóricos da literatura, mas em termos de discussão do ato da escrita eu prefiro dar atenção ao que dizem os escritores. É mais perto da experiência real de quem escreve.  Crítico literário é muito bom para avaliar o que já está publicado.  Pra ajudar a enfrentar a página em branco e o arquivo zero byte, só escritor.

Casey diz, logo no começo: “Não posso ensinar uma pessoa a escrever, mas às vezes posso ensiná-la a reescrever”.  Isso me lembrou outra sugestão que não sei se é de Hemingway ou de Faulkner, mas poderia ser uma colaboração de ambos: “Escreva bêbado, reescreva sóbrio”.  A escrita envolve dois tipos de ação, cada um suprindo as limitações do outro.  Há um primeiro movimento que é o Despejo, onde o sujeito derrama em cima da página toda a confusão mental de que fica possuído no momento em que inventa de contar uma história.  É um momento de liberação do inconsciente, como se diz; um momento em que ele precisa remexer bem no fundo de um baú de coisas nunca-ditas e dizê-las pela primeira vez.

Depois vem o segundo momento, em que uma mente mais racional e crítica vai capinar esse matagal de rascunhos, arrancando o que não se aproveita. É nessa parte que (segundo Casey) um olhar externo pode ajudar.  O olhar de alguém capaz de perceber o que estava acontecendo na mente do autor e dizer-lhe: isto está longo, isto está curto, isto é repetição, isto é imitação, isto está muito verde ainda, isto é clichê.  Sempre (acho eu) pedindo para que o autor mude, mas refreando a vontade de sugerir a mudança.  Quem passa pente-fino em texto alheio tem o direito de criticar e sugerir mudanças, mas não de impor frases suas.

Um problema que se vê muito por aí é texto que não foi revisado. (Não falo em manuscritos: falo em livro publicado em editora profissional.)  Houve uma revisão ortográfica, mas às vezes penso que o que está ali é o primeiro rascunho, a primeira versão, com todas as suas repetições, redundâncias, imprecisões, incoerências, quebras involuntárias de fluxo narrativo. Revisar um texto não é passar corretor ortográfico.  Vários destes meus artigos são enviados sem uma revisão decente, devido à pressa.  Mas livro não tem a desculpa-esfarrapada da pressa.  Livro fica meses nos corredores da editora.  Dá tempo de reescrever, sim. Às vezes a pressa em publicar é tanta que o autor publica aquilo do jeito que jogou no papel, e se queima para sempre.





sábado, 27 de dezembro de 2014

3695) O tiro no rosto (27.12.2014)



Caminhando devagar, o homem de blusão negro chegou à esquina de uma ruazinha estreita, calçada de pedras, iluminada por um poste. Casas estreitas se sucediam, como livros numa estante. Na luz arroxeada do anoitecer, janelas projetavam retângulos amarelos até a calçada oposta. Algumas crianças brincavam em torno de um carro estacionado.  Diante do batente de uma casa de janelas fechadas, um velho de pijama cochilava com a cabeça abaixada, numa cadeira de balanço. O homem tirou do bolso um papelzinho, enquanto caminhava, e conferiu o número que tinha anotado.

Bateu à porta, pediu para ver o dono da casa. Uma criada de roupa amarfanhada o fez entrar e pediu-lhe que esperasse. A sala tinha um cheiro úmido como se há muito tempo as janelas não fossem abertas para o vento e o sol. Farelos de comida pelo chão indicavam que não tinha sido varrida na véspera. Ele sentou no sofá, que cedeu mais do que era de se esperar. A parede onde estava encostado o sofá vibrava: no quarto contíguo havia uma TV ligada, bradando o ruído irritante de um filme de mercenários em guerra.

Há dez anos ele tentava localizar aquele homem. Viajou o país inteiro, remexeu arquivos, consultou cartórios, rastreou os indícios de sua passagem. Uma pista o trouxe àquela cidade de um milhão de habitantes, onde parecia fácil desaparecer.  Era fácil esconder-se ali, dissolver-se para sempre num subúrbio, numa ruazinha remota, cercado por gente que não dava atenção a nada.  De posse do endereço anotado, ele voltou ao hotel, almoçou, deu alguns telefonemas, e ao anoitecer pegou o ônibus que o trouxera ali.

“Quem lhe deu meu endereço me ligou em seguida,” disse a voz à janela, sobressaltando-o. Olhou: era o velhinho que estivera cochilando na calçada, e o revólver em sua mão não tremia. “Não pense que me caçou. Fui eu que o pesquei.”

A escolha do filme e o volume alto tinham sido propositais. O estalo do .22 passou despercebido. O velho e a criada arrastaram o corpo para o buraco retangular cavado às pressas. Para eles era um ritual longamente aguardado, que se cumpria em alguns minutos e sinalizava o início de uma nova espera. Pás de uma terra escura, empapada de chuva, foram jogadas sobre o cadáver e sobre os ossos carcomidos que despontavam no fundo, de mistura com roupas apodrecidas.  Dentro da casa, o tiroteio do filme continuava, e não deixava ninguém escutar aquele outro tiroteio esparso, que de ano em ano reduzia o número dos herdeiros de um segredo mortal, um tesouro escondido, uma fórmula secreta, um manuscrito raro, alguma dessas coisas pelas quais os homens matam e morrem ao fim de uma longa busca e de uma longa espera.





sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

3694) Alguns adeuses do ano (26.12.2014)



Foi o cinema paraibano que me levou pela primeira vez à casa na Rua do Chacon, na tarde em que fui apresentado a Ariano Suassuna.  Fui com a esperança de poder, nos intervalos da filmagem, conversar com ele sobre cantoria de viola.  Acabamos conversando sobre romances policiais.  O filme era realizado por Marcus Vilar, Torquato Joel e Durval Leal, sendo que Idelette Muzart e eu éramos convidados.  Ariano estava numa fase meio fora dos holofotes; a imagem que eu guardava dele era a da foto na Pedra do Reino, cabelo preto, tirando a vista, com aquele sorriso sorrateiro e oblíquo.  Nessa primeira vez, tive um susto com sua aparência idosa.  Era 1993, ainda. Mesmo sendo poucas vezes, deu tempo de conversar até sobre ficção científica.

Que filme estaria passando na mente de Manoel Monteiro, na poltrona do ônibus, rumo a um lugar distante e diferente, de onde ele sabia que não ia mais voltar?  O cordelista sumiu no trajeto de Campina a Recife, como quem foi abduzido.  Gente se alvoroçou, buscas foram feitas.  Dias depois ligam de um hotel do Pará, onde ele fechou sozinho os próprios olhos.  Certos poetas, mesmo quando falam de Bagdá ou do Sertão, estão falando é de si, estão dando os filmes de sua alma para todo mundo ver também.  O formato de uma sextilha é ver uma tela de cinema, não é mesmo?  E não saberemos qual foi o último filme que viu Manoel.

Sérgio Valença, o famoso Pezão, era diretor de palco dos grandes shows no Marco Zero, no Carnaval de Recife, onde eu ia quase todo ano  Ele fazia isso o ano inteiro, e dava cursos sobre palco, luz e som, produção, essas coisas.  Era um Seu Lunga. Tinha uns dois metros de altura e poderia ser dois caras, se quisesse.  Sensato, pôpêiro, opinioso, reivindicador de dedo em riste, polemizador sincero e rude, um romântico que se dizia um falso canalha.  Tínhamos em comum Obama, o Sport, muita coisa de música.  Era um gigante com o corpo todo bombardeado, precisava de remédios caríssimos, lutava contra burocracias.  Conversamos ao vivo poucas vezes; foi nas redes sociais que vim a ver como ele era.  Tinha 48 anos.

Quando José Marcolino morreu num acidente de estrada criaram o mote: “Uma vaca matou Zé Marcolino / e eu não dava José numa boiada.”  João Paraibano morreu atropelado, morreu pela coincidência (que ninguém previu, nem estabeleceu, nem desejou) entre duas trajetórias regidas pelo acaso e sabe-se lá pelo que mais.  Morreu nosso grande poeta do sertão, aquele rapaz gentil de olhos tristes que eu conheci no Congresso de Campina. Na Web circulou uma imagem final durante seu enterro. Um miolo de multidão improvisando sextilhas, passando na carne viva da perda o mertiolate do verso.




quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

3693) Natal 2014 (25.12.2014)



(foto: Andrei Tarkovsky)

1.
...range-range, engatada, a engrenagem
das esferas concêntricas do espaço,
de um continuum mais tênue do que o aço
onde giram os cosmos-rolimãs.
Brabeja o sol a esturricar manhãs.
Assopra a noite a cinza vã do dia.
Dói-me hoje um pensar que não doía
e o gargalo se estreita onde sufoco.
Cada dia é a tecla, a tal que eu toco,
a compor o melódico desenho

2.
em que o mundo a girar nem franze o cenho
espalhando espirais nos horizontes...
Mas não me mostres, mundo. Não me contes         
mais histórias de ti, já sei de tantas!
Já basta o sonho de que me levantas
toda manhã, embrutecido e lasso,
e cambaleio e tombo, passo a passo,
buscando o espelho pra que se confirme
a minha identidade, e despedir-me
do sono aconchegante em que capoto.

3.
Acordar de manhã é terremoto.
Abrir caixa de emails é tsunami.
E o dia inteiro é tempo de desmame
me tirando do turbilhão onírico.
E eu salto assim de um mundo de De Chirico
aos talk-shows da Globo matutina,
onde já ferve a escuma natalina
da busca do consumo a qualquer preço,
e tomo, com o estômago ao avesso,
o café fraco deste fim de vida.

4.
Quanto pinheiro e bola colorida,
ouro de tolo, neve de algodão!
Fumega ainda o resto da eleição
que devastou da pátria a auto-estima.
Quebra-o-pau pra valer no andar de cima
e a gente aqui, pensando em crediário.
Por que o espelho me sussurra: “Otário!”
e eu torço tanto pra que acabe logo?
Dezembro é o velho poço em que me afogo
tendo somente o sol por testemunha.

5.
Mas este ano foi de arrancar unha,
e eu nem sei se me escapuli inteiro,
com vergonha de ser um brasileiro
que se acha melhor do que o Brasil.
O povo à rua sai, com-mais-de-mil,
e tudo volta ao que já estava antes;
última-forma no quartel de Abrantes,
“plus ça change, plus c’est la même chose”,
nossa democracia é mera pose
e no fundo quem manda é o Grande Irmão.

6.
Sigo em busca do derradeiro Não
pelas curvas da estrada do Talvez.
Resta pouco a cumprir, menos de um mês,
de sorriso e champanhe obrigatórios.
Os Natais se parecem aos velórios
em tensão, em teatro coletivo.
Cada qual se contenta de estar vivo
o resto é lucro, mesmo sem ter resto.
Basta tocar a musiquinha, e, “presto!”:
o milagre acontece novamente.

7.
O que vai ser de nós, daqui pra frente?
Os dados, como sempre, estão girando,
como o planeta, e não se sabe quando
(e se) vão colapsar, dizendo “fim”.
Enquanto isto, o que restar de mim
vai batucar as letras do teclado,
saborear a cerva, olhar de lado,
rir em silêncio da comédia humana...
Feliz Natal, galera. A vida engana,
e o melhor de um deserto é a miragem...





quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

3692) "A Festa de Randolfo" (24.12.2014)



O texto "Randolf's Party" foi o primeiro texto em prosa de John Lennon que eu li na vida, quando "O Pasquim" o publicou em 1969, numa tradução, se não me falha a memória, de Rebeca Nauslauski. 

É do livro “In His Own Write”, que Lennon publicou em 1964, no auge da Beatlemania, e que lhe valeu comparações com James Joyce (que ele nunca tinha lido, e que provavelmente morreu sem ler). Explica-se. O inglês brincalhão de Lennon é todo salpicado de palavras inventadas ou destoantes que substituem a palavra normal que esperaríamos na frase. Os trocadilhos dele não tentam misturar os significados, mas apenas confundir os sons.  Sua prosa na maioria desses contos é uma distorção sonora das palavras habituais: “Christmas” vira Chrisbus, Chrispbut; Randolph vira Rangolf, Randoff, Randoob... 

É como se um texto normal estivesse sendo lido em voz alta por um liverpudliano bêbado, com voz pastosa; por causa disto, tudo que ele diz fica semi-ininteligível e sujeito a confusões.


A FESTA DE RANDOLFO 
(John Lennon) (tradução BT, 1981)         

Era época de Nemtal, mas Randolfo estava só.  Onde estariam seus velhos amigos Bernie, Dave, Nicky, Alice, Beddy, Freba, Viggy, Nigel, Alfred, Clive, Stan, Frenk, Tom, Harry, George, Harold?  Onde estariam nesse dia? Ruindolfo olhou, chorumbático, para o único Cartão-de-Napalm que recebera: um de seu pai, que morava muito equidistante dali.

“Não posso nemtender isso de estar assim tão souzinho no único dia do ano em que todo joão-alguém pode expirar receber um amígado ou dois?” pensou Randófilo. Em todo catso, ele continuou penduricalhando os enfeites naftalinos, bem como o seu pede-meia.  Repentintinamente tocaram na sineta da torta da frente.  Oras, mas quem poderá estar me tilintando a estas horas?  Ele abril a porta e quem viu alívio? Senão seus amínguos Bernie, Dave, Nicky, Alice, Beddy, Freba, Viggy, Nigel, Alfred, Clive, Stan, Frenk, Tom, Harry, George, Harold - pois eram.

“Entrem tanto, velhos ambigos, meus bem-armados, meus comparseiros!”  Com um grande sou-riso em sua face, Rindolfo os anfitriou benvindamente.  E eles invadiram a cela-de-visitas, a gargralhar e sorrir dentes, com exclamaçons de “Boas Fezes, Randótimo” e deram-lhe tapas nas costas e assaltaram-lhe em cima e o derroubaram no chão e lhe repisaram na cabeça: “Nós nunca lhe gostamos, esses ânus todos em que o conhecemos.  Você nunca hipertenceu mesmo à nossa turma, tá sabendo, seu moribundamole?”

E os sacanas é claro que o assassinaram, assim, sacas?  Mas no final das contras ele não morreu sonzinho, não é?  Bobas Festas e Feroz Ano Novo, Randoido, meu amigo de fel, meu irmão caramarrada.




terça-feira, 23 de dezembro de 2014

3691) A felicidade é chata (23.12.2014)




Há uma frase muito citada de Balzac, acho que do Esplendor e Miséria das Cortesãs (1838-47), em que o autor diz: “A história da felicidade é entediante, de modo que podemos pular os cinco anos seguintes”.  

Tem muita gente que não gostaria de ir pro Céu: para eles, seria um grave problema, porque o Céu é monótono. (Eu mesmo já dei minha contribuição, com um poema intitulado “Quero ir pro Inferno”) 

O Paraíso seria como o desses filmes espíritas: uma espécie de clínica, com gramados verdinhos estilo Windows XP, todo mundo de branco, passeando de mãos dadas, tomando suco de groselha e escutando “Because”.


Pra mim tudo isso decorre de uma indefinível sensação subconsciente, em nossa cultura, de que trabalho é uma coisa ruim, esforço é uma coisa ruim, e que um lugar ideal (=um paraíso) teria que ser um lugar sem esforço, conflito, incerteza, choque de vontades e de opiniões...  

É a mesma regressão infantil que nos fez inventar geringonças mecânicas e eletrônicas para nos poupar de esforços físicos. Acabamos inventando mil-e-uma outras geringonças (esteiras, academias) para fazer esforços desnecessários. Ninguém percebe, claro, porque somos O País dos Cegos.

Mas no próprio momento de imaginar isso alguma coisa no subconsciente do imaginador se rebela, mete os pés.  Sabe que essa idealização é falsa, e que no fundo ele não quer viver nessa pasmaceira.  

Os cinco anos de felicidade imaginados por Balzac (suponho que sejam cinco anos de felicidade de um casal) não foram passados, certamente, deitados na relva, num ano de 365 feriados-com-rivotril. A vida real, mesmo feliz, não é entediante.  

Entediantes são essas fantasias toscas e kitsch de repouso-a-perder-de-vista que a cabeça da gente imagina quando a gente está no fundo do poço do cronograma estourado, do relógio que galopa, das contas que não batem, dos planos que vão por água abaixo, das picuinhas domésticas, do azedume da fadiga, do rancor mal dormido entre os fracassos.

É compreensível que pessoas com décadas de exaustão e dívidas sonhem com jardins tecnicolor à beira de regatos murmurejantes.  É uma fantasia compensatória, mas que não pode se sustentar como definição de felicidade. 

Data vênia, amigos que vivem no sufoco (e eu sei tanto o que é isso!), mas só existe felicidade se for uma “felicidade guerreira”, uma felicidade em que o corpo e a alma (ou só a alma, se se trata do Além) tenham coisas relevantes para cuidar.  

É compreensível, em nossa cultura do trabalho escravo, que os paraísos tenham tinturas de ócio, mas os cinco anos que Balzac pulou devem ter sido animadíssimos, e dariam outro livro tão bom quanto.







domingo, 21 de dezembro de 2014

3690) Medo de errar (21.12.2014)




(Dimas Batista)



Zé de Cazuza conta no livro Poetas Encantadores que encontrou com Pinto do Monteiro e na conversa Pinto falou que tinha feito uma cantoria dias atrás com Dimas Batista.  Zé de Cazuza perguntou como tinha sido, e Pinto respondeu: “Uma merda. O homem tá com medo de errar”. E Zé de Cazuza: “Ah, sim.  Ele formou-se em Direito.” 

Dimas foi um dos primeiros cantadores de viola a ter curso superior.  O episódio narrado por Zé mostra a falta de cerimônia entre esses grandes poetas, que conviveram durante a vida inteira, e mostra essa fase de transição entre os cantadores totalmente intuitivos, como Pinto, e os que começaram a se valer de estudo, erudição, educação formal.  

É a velha oposição entre Romano do Teixeira e Inácio da Catingueira: o desafio estava empatado até que Romano puxou o assunto de Mitologia Grega, coisa que o ex-escravo Inácio não tinha leitura para acompanhar.

É engraçado, mas isso me lembra Vanderlei Luxemburgo, o polêmico técnico atualmente no Flamengo.  Ele diz: “O medo de perder tira a vontade de ganhar”.  

Vanderlei tem uma porção de defeitos, mas ele usa para o futebol um raciocínio bastante correto.  Diz ele que se um time empata 5 jogos ganha 5 pontos, sem ter perdido nenhum jogo; mas se ganha 2 jogos e perde 3, ganha 6 pontos.  Melhor, portanto, partir pra cima sem medo de perder.  

Aliás, foi para incentivar essa busca pela vitória que a Fifa decidiu atribuir 3 pontos por vitória, fato relativamente recente, de 1994. (Até uns 20 anos atrás, em competições oficiais, uma vitória dava apenas 2 pontos.) 

Voltando à história inicial.  Eu não diria que Dimas (a acreditar na versão de Pinto) estava com medo de errar porque se formou em Direito.  Acho mais possível que ele tenha se formado em Direito porque tinha medo de errar, e aí não falo daquela cantoria específica, mas do estilo de cada cantador.  

Existem cantadores reflexivos, que gostam de pensar as coisas bem direitinho, o que em princípio parece ser o contrário da cantoria.  Dimas, pelo que já ouvi em gravações, era um daqueles poetas de cantoria lenta, cadenciada, mantendo sempre o embalo sob controle, escandindo as palavras com precisão.  O contrário daqueles repentistas que pensam e cantam com tal rapidez que chegam a atropelar as palavras.  

São dois modos de pensar, dois perfis mentais diferentes, que se refletem no estilo do improviso. Perfeccionismo e cantoria não combinam. Gosto do jeitão de Dimas, que é o de Oliveira de Panelas, de Diniz Vitorino; e gosto de cantador arrojado, acelerado, que parece estar cantando sem pensar, como Louro Branco.  Mas são estilos pessoais.  Um não conseguiria cantar como o outro, mesmo que quisesse.







sábado, 20 de dezembro de 2014

3689) O teatro dos meninos (20.12.2014)



Fiquei matutando numa coluna de L. F. Verissimo. Dizia ele: 

“O compositor e crítico de música Virgil Thomson (americano, 1896-1989) se divertia com o fato de que, na Espanha, as crianças brincavam de tourada sempre em três: um fazendo o papel do touro; outro, o do toureiro; e um terceiro gritando “Olé!” Os papéis podiam ser trocados, claro, mas as funções não mudavam: um touro, um toureiro e um espectador, que Thomson preferia ver como um representante do público — ou da crítica.”

Verissimo lembra que a obra de arte não é só o diálogo entre o artista e o espectador (ou leitor), mas a relação triangular que envolve também a crítica. Mas a imagem que ele usou ficou me remoendo o juízo até que lembrei o que é que ela me lembrava.  

Era esse trecho de “A busca de Averroés”, um dos melhores contos de Jorge Luís Borges (em “O Aleph”).  Averroés era o grande erudito árabe que viveu na Espanha, e Borges tenta reconstituir alguns dias de sua vida neste conto.  A certa altura ele diz:

“Foi distraído de suas distrações eruditas por uma espécie de cantilena. Olhou através das grades da varanda: lá embaixo, no pátio de terra batida, meninos seminus brincavam. Um deles, equilibrando-se nos ombros de outro, estava brincando de ser um muezim: com os olhos cerrados, entoava o canto monótono do muezim: não existe Deus senão Alá. O garoto firme e imóvel que o suportava sobre os ombros era a torre de onde ele salmodiava; outro, ajoelhado, prosternando-se na areia, era a congregação dos fiéis. A brincadeira não durou muito: todos queriam ser o muezim, nenhum queria ser a congregação ou a torre.”

O fato de ambos os episódios terem a Espanha como cenário me sugere que Thomson era um leitor de Borges. Em todo caso, não custa nada especular. Talvez os meninos espanhóis tenham propensão à metalinguagem.  Talvez algo na cultura deles (ou na cultura popular deles) lhes ensine que em cada experiência de vida existem essas três funções.  Talvez todos prefiram ser o toureiro ou o muezim; talvez alguns se contentem com ser a platéia ou a congregação; e os mais estóicos, mais calejados, se disponham a ser o touro ou a torre.




sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

3688) O Apanhador (19.12.2014)



O artista Richard Prince produziu uma obra que é um fac-símile perfeito da primeira edição do livro de J. D. Salinger O Apanhador no Campo de Centeio, em todos os detalhes, apenas com o nome de Prince na capa, como autor.  

Prince é um “apropriartista”, um praticante da “arte da apropriação”, uma moda recente (aliás nem tanto) que consiste em pegar uma obra alheia, fazer-lhe alterações microscópicas ou nem tanto, e devolvê-la num novo contexto.  Prince é famoso pelas fotos que fez das fotos de propagandas de Marlboro, e já foi alvo de um processo por apropriação de fotos alheias. (Ele não ganha muita grana com isso – faz quadros que são vendidos por milhões.)

Li um artigo de Kenneth Goldsmith, outro apropriartista (falo dele aqui: http://tinyurl.com/mtf7jqg), onde ele comenta o processo judicial em que Prince se envolveu por ter copiado fotos de um livro sobre rastafáris. 

Greg Allen, (do blog ) publicou um livro com 400 páginas de documentos desse processo, incluindo testemunhos, declarações juramentadas, sumários da corte.  

Goldsmith acha esse livro (Canal Zone Richard Prince YES RASTA: The Book) uma leitura essencial sobre a “arte de apropriação”: “Na verdade, esta coleção de documentos constitui o livro definitivo sobre práticas apropriativas nas artes, pois é repleto de advogados citando em minuciosos detalhes narrativos exemplos anteriores de roubo e pilhagem, envolvendo todo mundo de Marcel Duchamp a Jeff Koons”.

O que esses artistas fazem não é arte, é crítica de arte, é uma discussão pública dos conceitos artísticos. Arte conceitual que consiste em sacadas puramente mentais não é arte (pra mim): é crítica, e não digo isso para diminuí-la, pelo contrário.  A arte precisa mais de críticas desconcertantes do que de obras de arte que induzem ao bocejo. 

Porém, falar de “arte conceitual”, uma arte apenas de sacadas inteligentes mas sem a produção de obras materiais, é como falar de "sexo mental”.  Toda obra de arte é, em seu início, conceitual, mas depois requer criação. Não havendo um “fazer novo”, o artista ficou no meio do caminho.

Arte (pra mim) é “poiesis”, o ato de fazer. Dela não resultam só idéias, mas “um objeto a mais somado ao mundo”. O gesto de Marcel Duchamp mandando um urinol para a exposição como objeto de arte produziu um circuito conceitual, mas não uma obra nova. O “Apanhador” de Prince, idem: deflagrou uma ótima discussão, mas dela nem brotou um livro nem uma obra de artes plásticas. 

É um gesto crítico, uma discussão interna das mais proveitosas, mas dela não resulta nada que um público seja capaz de usufruir. O mundo da Arte ficou mais nítido, mas não ficou maior.




quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

3687) No Campo de Centeio (18.12.2014)



Dizem que o ato mais anarquista da arte moderna foi quando Marcel Duchamp foi numa loja de material de construção, comprou um mictório de porcelana branca, daqueles de banheiro público masculino, e o mandou para uma exposição, com o título “Fonte”. Hoje, parece até um gesto acadêmico. Duchamp pegou um objeto industrializado, anônimo e anódino, e esfregou na cara de todo mundo que aquilo era uma obra de arte pelo simples fato de que ele estava dizendo. Tudo isso foi num contexto de uma certa impaciência dos artistas com a catação-de-lêndeas dos teóricos, cuja função é pegar dois fios de cabelo contíguos e dizer que um deles é arte e o outro não é.  A mesma situação que fez Mário de Andrade desabafar: “Conto é tudo aquilo que o autor chama de conto”.

A onda agora é o que chamam “appropriation art”, “arte da apropriação”, e na verdade é a industrialização e mercantilização do que Jorge Luís Borges havia sugerido (como “experiência pensada”, de caráter filosófico e estético) no conto “Pierre Menard, o autor do Quixote”. Pierre Menard decidiu reescrever o Dom Quixote e até conseguiu em alguns momentos reproduzir (sem consultar o original) trechos inteiros da obra de Cervantes!  Os apropriartistas (se este termo pegar, favor citar o Jornal da Paraíba e a data de hoje) vão além.  Pegam uma obra de arte criada por outra pessoa (e não um objeto qualquer) e a expõem como se fosse sua.

Vejam o caso de Richard Prince, um notório apropriartista norte-americano.  Sua façanha mais recente foi a publicação de O Apanhador no Campo de Centeio, o romance de J. D. Salinger, em seu próprio nome. Uma reprodução quase idêntica da primeira edição do livro, de 1951, mesma capa, “um perfeito fac-símile do original, inclusive o papel espesso e cremoso e a clássica tipologia”. Os comentários elogiosos ao autor permanecem na contracapa só que em nome de “Richard Prince”.  O qual, num rasgo de modéstia ou de dominação, insere na página final a nota: “Esta é uma obra de arte de Richard Prince. Qualquer semelhança com um livro é coincidência, e não foi intencional da parte do artista”.  Cópias não assinadas da obra são vendidas ao preço de algumas centenas de dólares; cópias autografadas, na casa dos milhares. Exatamente os preços atuais de cópias da primeira edição do livro, autografadas por Salinger.

Prince é um picareta? Não sei. Ele é pintor também, e seus quadros valem milhões. Dinheiro com isso ele não está ganhando. Está querendo enganar alguém? Se o quisesse, não estaria usando um dos livros mais famosos do país.  Preciso de uma teoria a respeito, mas meu espaço acabou, ufa. Daqui pra amanhã eu arranjo.


quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

3686) Heróis em casa (17.12.2014)




“Todo menino, Sr. Corregedor, cria para si mesmo seus Príncipes e Princesas, deuses e demônios, heróis e Cavaleiros, Anjos puros e terríveis, numes tutelares que se tornam os modelos de suas vidas.  No meu caso, foram os mortos da minha família e as terríveis Divindades tapuio-sertanejas; e quantas pessoas não já morreram, no mundo, de uma dura morte, só por causa de fidelidades e divindades semelhantes a essas minhas?  Eu tive a sorte – ou a desgraça, ou a sina, não sei! – de ter os meus heróis em casa, como brasas ardentes colocadas desde muito antes do meu nascimento sobre a minha cabeça, asas de fogo e de navalha a me chamarem para o alto”.


Quem diz isso é Pedro Dinis Quaderna, o narrador do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna.  Quaderna é de uma estirpe particular de anti-heróis. Ele vem de uma família de titãs monstruosos, e isso é o que importa, visto que ele mesmo aos próprios olhos não vale nada nem é ninguém.  

“Tive a sorte de ter meus heróis em casa” é um impulso de grandeza mais do que compreensível da parte de alguém que na fazenda onde foi criado era visto como um mero agregado, um primo pobre, o beneficiário de uma boa ação.

Quaderna, no entanto, não descende de heróis.  O maior exemplo de grandeza em sua família é seu bisavô, conhecido como D. João, o Execrável, que lavou os lajedos na serra de Belmonte com o sangue quente de mulheres e crianças, sonhando com isso desencantar um castelo e promover o retorno de Dom Sebastião.  

Os antepassados de Quaderna são, na sua bestialidade, uma encenação melodramática, uma caricatura de um tempo em que era preciso derramar sangue humano para garantir a aliança com o divino.

Há um movimento constante de sublimação dentro da Pedra, em que Quaderna esvazia o que é guerra em encenação (as cavalhadas), esvazia a ambição política na (reconhecidamente mais impecuniária) ambição das letras, esvazia um duelo mortal numa patuscada de penicos.  Enquanto sonha com um trono qualquer, Dinis Quaderna pensa consigo mesmo que a melhor coisa que existe é mesmo estar vivo, haja vista sua descrição quando lhe perguntam o que é o Mundo, segundo a filosofia do Penetral: 

– Estou pensando numa estrada, numas pedras, num bode, num pé de catingueira, numa Onça, numa mulher nua, num pé de coroa-de-frade, no vento, na poeira, no cheiro de cumaru e num jumento trepando numa jumenta!” 

(Se alguém tiver uma definição melhor do Mundo, favor publicar na Internet.)  

A recusa da violência, numa linhagem ou dinastia que convive com ela na boa, a recusa de batizar o mundo com sangue, é um traço mais dos Vilar do que dos Suassuna, e acaba sendo o traço dos Quaderna.






terça-feira, 16 de dezembro de 2014

3685) Música, imagem e idéia (16.12.2014)



Coube a Ezra Pound dar uma das mais simples, ricas e eficazes receitas para definir a poesia, em seu ABC da Literatura (Editora Cultrix, São Paulo). Ele diz, no capítulo IV: “Contudo, as palavras ainda são carregadas de significado principalmente por três modos: fanopéia, melopéia, logopéia.  Usamos uma palavra para lançar uma imagem visual na imaginação do leitor ou a saturamos de um som ou usamos grupos de palavras para obter esse efeito.” Já vi estudantes recitando ladainhas para decorar isso. E na verdade nem precisa tanto esforço.  Basta entender o que é.

“Fanopéia” se refere à utilização das palavras para produzir imagens visuais (ou sensoriais de um modo mais amplo – imagens auditivas, olfativas, táteis, etc.) na mente do leitor.  “Fano—“ vem do grego “phainen”, “mostrar”, tornar visível uma imagem.  Por exemplo, “diáfano” é algo que se deixa trespassar por uma imagem.  A fanopéia é portanto a produção de uma imagem na mente do leitor, pelo uso de palavras. Se eu digo: “Um círculo vermelho com um quadrado amarelo no centro”, produzi uma fanopéia em quem leu essa frase.

“Melopéia” vem do grego “melo”, que significa música e deu origem a termos como “melodia”.  É a produção de uma impressão musical, melódica, na mente do leitor, pela combinação de sons sugeridos pelos fonemas usados nas palavras do verso.  E “logopéia” vem de “logos”, que significa “idéia”; mesma origem de “lógica”, etc.

O que diz Pound?  A poesia usa palavras arranjadas de tal maneira que produzem, na mente de quem as lê, impressões visuais (e sensoriais, num sentido mais amplo), impressões melódicas e impressões de idéias abstratas (que não se relacionam nem com a imagem nem com o som).  Música, imagem e idéia.  Cada poema, cada verso, traz essas três coisas, em proporções que variam o tempo inteiro. 

E esse elemento, “---péia”, de onde vem? Vem do grego “poein, poiein”, que significa “fazer, criar, compor”.  É a mesma palavra que está na raiz de “poeta” e “poesia”.  O poeta é um fazedor. (“El hacedor” é o título de um conto de Borges em homenagem a Homero.)  A poesia é algo que é criado, construído, composto.  Não cai do céu nem brota do chão. É o resultado de uma ação conjunta da emoção, da inteligência e da vontade. Poesia é a criação, através de palavras, de impressões visuais, impressões melodiosas e idéias abstratas.  Claro que a fórmula de Pound não encerra o assunto. (Alguma fórmula já encerrou algum assunto?)  Mas é um ponto de partida. Não explica o “por quê” nem o “para quê” da poesia, mas não conheço nenhuma outra receita que explique melhor o “como”, a maneira como a arte da poesia produz os efeitos que produz.





domingo, 14 de dezembro de 2014

3684) O céu dos escritores (14.122014)



Um amigo postou dias atrás numa rede social este pequeno episódio que aparece nas memórias de Isaac Asimov. Ele conta um sonho que recordou com enorme clareza ao despertar (segundo ele, algo raro de lhe acontecer). Sonhou que morreu e foi pro Céu, que consistia nos habituais relvados verdejantes, nuvens, ar perfumado e coros celestiais cantando à distância. Ele perguntou se era o Céu, e o Anjo ao lado confirmou.  Isaac: “Mas meu lugar não é aqui. Eu sou ateu.”  “Não houve erro nenhum,” disse o Anjo. “Quem decide quem vem pra cá somos nós.”  Ele olhou em volta e perguntou: “Será que tem aqui uma máquina de escrever que eu possa usar?”  E o significado do sonho ficou claro para ele.  O Paraíso, na sua cabeça, era o ato de escrever, e ele achava que já estava no Paraíso há cinquenta anos, e sempre tinha sabido disto.

Esse é mais um ponto de semelhança entre Asimov e Jorge Luis Borges, para quem o Paraíso era uma espécie de biblioteca. O ato de ler e de escrever está associado neles a uma espécie de paraíso das endorfinas ou serotoninas, não sei exatamente quais são as substâncias associadas ao nosso ofício, só sei que são celestiais.  Devem ser as mesmas que muitas pessoas descrevem experimentar após quarenta minutos caminhando ou trinta puxando ferro. 

Pode ser que o Além seja mais hierarquizado do que a gente imagina, e que cada pessoa tenha direito a um céu de acordo com o que de fato mais gostava de fazer.  Escritores que reclamam do “sacerdócio” e das privações da vida de autor deverão ser proibidos de escrever, e contentar-se com um Paraíso onde se joga o bilhar e mais nada.  Bem feito. Escritores que trabalham na boa, sem fazer drama, terão direito a usar seu tempo como quiserem, seja ao teclado ou se distraindo.  (Há distrações e entretenimento no Paraíso, e não é algo tão kitsch e careta como alguns podem estar pensando. Tem mil coisas legais. Só não tem sexo, drogas e rock-and-roll.  Asimov e Borges até agora não se queixaram.) 

Como seria o céu de Philip K. Dick?  Um mundo onde tudo fosse inquestionável, moeda de um lado só, realismo de ferro?  Como seria o de Lovecraft?  A volta à mansão da família, sem roedores em volta?  Como seria o céu de Leandro Gomes de Barros?  Uma utopia asimoviana sem carestia, sem esposas e sem sogras?  E o céu de Antonio Conselheiro, seria um Empíreo de taipa?  O de  Jorge Amado, seria um céu que comportasse Vadinho?  Por outro lado, não consigo imaginar um sujeito até relativamente banal, embora ótimo escritor, como Henry Miller, em outro lugar que não seja um paraíso, e em outro paraíso que não seja um paraíso em seus próprios termos.





sábado, 13 de dezembro de 2014

3683) A mensagem do morto (13.12.2014)



Defendo a teoria de que todo subgênero literário corresponde a uma necessidade profunda da psique humana. Livros sobre crimes decifrados e criminosos entregues à polícia confirmam nossos propósitos justiceiros, por mais superfaturados que sejam.  Livros sobre viagens espaciais exploram nossa curiosidade e nosso senso de aventura.  Livros sobre homens e mulheres vestidos de couro que fazem sexo usando algemas e outros adereços correspondem às fixações eróticas de um certo número de homens e mulheres. E la nave va.

Há um subgênero do policial que, se não foi inventado por Ellery Queen, coube a este transformá-lo numa pequena proeza de engenhosidade.  São as histórias de mensagens de moribundos.  Digamos que houve um crime numa mansão.  A polícia chama Ellery Queen (que é filho de um inspetor de polícia de Nova York) pra dar uma olhada.  O sujeito foi envenenado ou apunhalado, mas demorou alguns minutos para morrer, ainda lúcido. Ele queria dizer quem o matou.  Mas se escrevesse “FULANO ME MATOU”, corria o risco do Fulano voltar à cena do crime e destruir a mensagem.  O que faz ele?  Improvisa, em seus últimos estertores, uma mensagem cifrada cujo sentido o assassino, mesmo que veja, não perceberá de imediato que o denuncia, e deixará passar, pois está com pressa.  A vítima tem a esperança de que a polícia, com mais tempo e calma para matutar naquilo, descubra a solução, perceba quem foi a pessoa denunciada em código.

Ellery Queen explorou isso em inúmeros romances e contos. São letras aleatórias rabiscadas num papel. Uma página específica de um livro, arrancada no último instante.  Um objeto que a vítima claramente se arrastou para alcançar e segurar, indicando algo. Um gesto desesperado com os dedos da mão. “O que ele quis dizer com isto, Mr. Queen?”, é a pergunta, e Ellery começa a fazer todas as associações de idéias possíveis entre a mensagem misteriosa e as pessoas suspeitas.

Um dos encantos da literatura detetivesca, o mais celebrado talvez, é a lógica e a imaginação com que Sherlock Holmes ou Hercule Poirot chegam à solução do mistério.  O encanto do subgênero das mensagens de moribundos é esse diálogo à distância entre a inteligência da vítima e a inteligência do detetive, passando por cima da inteligência do criminoso.  Nos últimos estertores de sua vida, uma pessoa consegue produzir esse gesto criptografado, instantâneo, que o criminoso desdenha ou nem percebe, e que o detetive, com a paciência de um charadista, irá decodificando aos poucos, limando hipótese por hipótese, até perceber a verdade e com isso fazer justiça àquele último impulso criativo de uma mente humana que não existe mais.





sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

3682) O plágio provençal (12.12.2014)




Diz Ezra Pound, no ABC da literatura, que “há uma tradição segundo a qual em Provença era considerado plágio tomar a forma de um outro, tal como agora se considera plágio tomar-lhe o seu assunto ou o seu projeto.”  Como tantas coisas antigas, isto nos parece um contrassenso.  Formas poéticas são parte do banco de dados da nossa cultura, são de todo mundo. A quadra, o hai-kai, o soneto, a sextilha... É do conteúdo dos poemas que esperamos originalidade.  As formas fixas existem como recipientes. Copos de diferentes formatos; a expectativa é quanto à bebida que vai ser saboreada.

Pelo que diz Pound sobre essa época de ouro da poesia (houve muitas épocas assim, pelo mundo afora), os provençais eram engenheiros do verso, eram construtores de formas, desenhistas de estruturas.  Criavam novas formas de estrofe, novas organizações das rimas, novas cadências da métrica.  Raramente se pode dizer com certeza científica que o poeta-tal inventou a forma-tal, mas os grandes praticantes acabam recebendo alguns direitos de paternidade.  O soneto italiano (com dois quartetos e dois tercetos) será sempre associado a Petrarca; o hai-kai japonês, a Bashô. 

Para os poetas da Provença, uma estrutura de metros e rimas a ser fielmente obedecida era o maior desafio que podiam conceber.  Graças a Augusto de Campos, principalmente, temos conhecimento de poemas como “L’Aura Amara” de Arnaut Daniel, uma canção de amor que tem como ponto de partida o trocadilho entre o nome da amada, Laura, e a expressão “l’aura”, a aurora. 

É interessante comparar esses conceitos de propriedade com o da cantoria de viola nordestina, porque José Alves Sobrinho, em seu Dicionário Bio-Bibliográfico de Repentistas e Poetas de Bancada, diz: “Silvino Pirauá Lima criou a sextilha e introduziu o martelo agalopado na cantoria. Nicandro Nunes da Costa criou o mote de um pé só; Manoel Raimundo de Barros criou a regra de um mote de 3 versos; Romano do Teixeira criou o mourão de 5 pés; Manoel Leopoldino de Mendonça Serrador criou a estrofe de 7 pés e o mourão de 7 pés; José Pretinho do Crato, criou o galope a beira mar; Antonio Ugolino Nunes da Costa criou a oitava antiga; Vicente Granjeiro Landim introduziu a oitava em quadrão; (...)”  E por aí vai Zé Sobrinho, numa enumeração que quase não acaba mais. 

Esses poetas sertanejos brincavam com as formas de estrofe, os metros, as rimas.  Não chegavam à sofisticação estrutural de Arnaut Daniel, e não guardavam para si direitos autorais sobre as formas, as quais ainda hoje são livremente propagadas. O desafio é somente o de usar a nova forma tão bem, ou melhor, que o seu criador.




quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

3681) Curso de sonambulismo (11.12.2014)




“Acordei misturado às noções que a noite fabrica” (p. 265).  Jurandir, narrador de O sonâmbulo amador de José Luiz Passos (Objetiva / Alfaguara, 2014) é um tipo particular de narrador literário não-confiável.  Não é o narrador que mente, é o que não sabe. Não é o que quer esconder de nós o seu passado, é o que deu um jeito de escondê-lo de si mesmo.  Preso a uma existência humilhada, Jurandir tem um defeito físico que ele deu um jeito de, em certos momentos, usar como pretexto para um ritual de prazer.  Sem sonhos de grandeza, ele arruma um jeito de se alegrar com as pequenas coisas, a sensação de conforto de uma rotina que ele é capaz de repetir, um fio de futuro em que pode confiar.

Me pareceu, também, a voz de um ex-drogado (ele toma remédios, quando interno na clínica), alguém que obedece ordens com docilidade, sem discutir, sem precisar entender, mas que de repente tem uns assomos de onisciência e faz a última coisa que se esperaria dele.  Jurandir recorda metodicamente os mesmos fatos, procurando alguma coisa que existia neles e não existe mais.  O sexo com a esposa e com a namorada lhe traz um pouco disto; o amor físico é “o canal rumo a um tempo em que somos apenas o que somos, sem arrazoados nem idéias que nos estraguem a hora.  É só assim que esquecemos do passado.” (p. 243).  

Nesses momentos ele lembra Milgrim, o ex-drogado usado por William Gibson em Território de Espiões (2007) e Zero History (2010), o homem com um buraco na memória (“Meus últimos dez anos estão em modo não-linear, ainda estou tentando organizar isso tudo”).  O mundo de Milgrim é o aqui-e-agora. “Qual fora a última vez em que estivera em Paris? Era como se nunca tivesse ido lá.  Alguém tinha ido, alguém com vinte-e-poucos anos.  (...) Um Eu mais novo, hipotético. Antes que as coisas tivessem começado a não correr bem, depois a piorar, depois piorar ainda mais, até que a essa altura ele deu um jeito de se ausentar a maior parte do tempo.  Tanto quanto era possível.”

Jurandir, ao contrário, remexe o tempo todo no passado, essa coleção de ruínas que nos visitam de vez em quando.  Ele descreve em câmera-lenta, degustando detalhes, o acidente com carrinho de rolimã que o deixou manco desde a infância; mas o acidente que vitimou seu único filho tem que ser remontado pelo leitor a partir de meia dúzia de referências passageiras, espalhadas ao longo do livro.  Jurandir é meio míope quanto a si mesmo; até acha as coisas, mas somos nós que dizemos o que ele tem na mão. Como um sonâmbulo, ele anda em cima do muro sem cair, fala sem escutar, emenda os cacos da vida apenas colocando-os lado a lado.





3680) "O sonâmbulo amador" (10.12.2014)


Garcia Márquez dizia que a coisa mais importante de um romance é a voz que conta a história. Ela tem que dar desde o início a impressão de que por trás da voz tem uma pessoa, e por trás da pessoa tem uma história inteira.  Alguns narradores já no comecinho nos tranquilizam, nos fazem ligar o piloto automático: ele vai entregar tudo de bandeja e só nos resta curtir.  Outros no primeiro virar de página já nos deixaram de orelha em pé, é uma narração cheia de cacos, contradições, lacunas.

O narrador de O sonâmbulo amador de José Luiz Passos (Objetiva/Alfaguara, 2014) é Jurandir, um cara às vésperas da aposentadoria, trabalhando num cotonifício perto do Recife. É casado, mantém um namoro ata-e-desata com uma colega de trabalho, foi encarregado de defender a empresa no caso de um acidente em que um operário se queimou.  Esta é a situação inicial, mas logo Jurandir entra numa despirocação inexplicável que acaba levando-o a uma clínica psiquiátrica.

Jurandir narra as coisas com clareza, com método (é o típico funcionário caprichoso, consciencioso, que se esforça para fazer tudo direito), mas seu discurso é cheio de buracos, de non-sequiturs onde ele pula para coisas que não têm nada a ver, como quem muda um canal na televisão. Ler sua história é como ver uma cena através de um vidro muito transparente mas com manchas opacas espalhadas na superfície. 

É a voz monocórdia do Meursault de Camus (O Estrangeiro), alguém brechtiano, distanciado, (descre)vendo coisas sem entendê-las por completo, e nos forçando a amarrar os nós nós mesmos. Contar é ajustar contas, é abrir diante de si mesmo e do mundo o massudo e amassado caderno das nossas dívidas. Em São Bernardo, Graciliano castiga o maucaratismo de Paulo Honório forçando-o a descrever a si mesmo quando resolve narrar suas memórias.  Jurandir não é mau caráter mas a verdade é que bastaram duas ou três pequenas catástrofes pra descompensar sua vida.

Nos momentos em que Jurandir conta seus sonhos (um leitmotiv recorrente ao longo do livro inteiro) percebemos que a própria vida dele em vigília está sendo contada com os cortes, as omissões, os “a cena muda” repentinos que acontecem num sonho ou num filme mudo.  Ele insiste que seremos capazes de entender seu drama. “Muitos de vocês já passaram por coisa parecida, não tenho dúvida” (p. 36).  Narrando esses episódios oníricos, ele se aproxima às vezes da voz distanciada dos narradores de José Agrippino de Paula em Lugar Público (1965), a voz robótica de um sujeito desperto porém sedado, alguém capaz de descrever com indiferença, ao telefone, o incêndio que acontece naquele instante no quarto onde se encontra.