domingo, 9 de novembro de 2014

3654) Os dentes e os ossos (9.11.2014)



Foi altamente constrangedor aquele fim de semana, um mês após a morte do Dr. Medeiros, em que fomos todos convidados para a casa da família em Mury, para a leitura do testamento.  Por que não faziam aquilo no apartamento do Leblon, meu Deus? Eu era genro tinha que ir, até porque havia uns primos velhos que só estavam ali porque (segundo meu concunhado Anchieta, casado com a irmã de minha mulher) queriam pegar nem que fosse uma raspa do tacho, e achavam que estando presentes à abertura do testamento poderiam influenciar o modo como ele tinha sido redigido há pelo menos dois anos. 



Pudessem ou não, não conseguiram. No dia e hora aprazados, a família inteira coreografou sua chegada em Mury, foram as instruções obedecidas, foi o cofre aberto, foi  o testamento lido pelos advogados, com gravação em HD e testemunhas juramentadas. O grupo de causídicos direcionou o óbvio na direção do inevitável. Talvez seja medida do meu “ennui” registrar que duas ou três famílias fizeram naquela breve tarde de sábado sua independência financeira com a merreca herdada, mas eu nem pensava nisso. Só pensava em quem teria assassinado o velho.



Todos podiam e gostariam de tê-lo feito. Faço parte desta família há catorze anos. O pior não é que fossem hipócritas. Não eram. Não é que dissessem que amavam o paizinho quando na verdade mal podiam esperar que ele batesse-o-trinta-e-um e deixasse para eles todas as escrituras, as ações e os rendimentos que tinha. De fato o tinham amado, mas quando a morte se prenunciou todos pensaram rapidamente no equilíbrio de suas contas bancárias, na pá-de-cal em velhos compromissos, no cala-a-boca em certo nível de credor que começava a ficar inconveniente. Ninguém deve tanto dinheiro quanto os ricos. E de repente tudo estava possível, ao alcance de uma assinatura.


A fatia-de-espólio da minha digníssima consorte resultou tão suculenta que até meu cinismo vacilou um pouco, mas me recompus a tempo e pensei que subornar depois de morto é uma dupla covardia.  Quando só restava uma página impressa na mão do advogado, começou a me dar um calor, um sufocamento, uma vontade de estar longe dali, rápido. Mal percebi quando ele leu, hesitante, as últimas linhas daquele documento cujo lacre rompera minutos atrás: “A abertura do cofre determina a ignição dos pontos iniciais do processo, que a esta altura (o advogado hesitou, voltou a ler) já está em pleno andamento. Não tentem fugir.  Se abrirem a porta da frente, o vento irromperá com tudo, inflamando as labaredas, consumindo esta maldita casa e vocês, malditos também, até o derradeiro osso.”  E foi exatamente o que aconteceu.




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