terça-feira, 7 de outubro de 2014

3624) As vozes de Dickens (7.20.2014)






Um inquietante artigo de Peter Garratt no The Guardian examina a literatura e a vida de Charles Dickens em função do que poderíamos chamar “a arte de ouvir vozes”.  A tese do autor, bastante plausível, é de que Dickens era um desses escritores que praticamente “recebem os espíritos” dos personagens.  Criando os seus romances, improvisava longos diálogos que depois eram passados para o papel.  Diz Garratt que entre 1853 e sua morte em 1870 Dickens realizou 470 performances públicas, que devemos entender como conferências e leituras dos próprios livros com alto grau de teatralidade.  Parece que Dickens eram bom nisso, porque viajou pela Europa e América fazendo essas dramatizações.



Ele cita um testemunho do próprio Dickens sobre o ato da criação literária: “Quando me sento para trabalhar num livro, algum poder benfazejo me mostra aquilo tudo, e atiça meu interesse, e eu não invento nada, não mesmo, eu somente vejo, e passo para o papel.”  Segundo ele, Dickens era interessado em mesmerismo, ilusões e alucinações. (Coisa que, uma geração depois, iria interessar autores como Doyle, Wells, etc.)  Ele provavelmente era um steampunk “avant la lettre”, mas devia ter um certo desdém pela tecnologia.  Seus garotos encardidos, maltratados nos orfanatos, perseguidos nos becos, fugindo de todos, prefiguram essa literatura dos marginais contemporâneos, só que uns marginais num mundo mais Julio Verne do que o dele.



Diz Garratt que “a experiência literária tem muito a ver com a experiência de escutar a conversa alheia.  Ler ficção é um processo de permitir que as vozes dos personagens soem em nosso ouvido interno, e de absorver os sons que produzem.”  Na minha experiência, foi Coelho Neto (Velhos & Novos) o primeiro autor que vi descrever um fenômeno que para mim era óbvio: o fato de que qualquer palavra que lemos vai sendo lida em voz alta por uma voz interior muito semelhante à nossa.  Não diria que é um fenômeno do ouvido (meus tímpanos não ouvem nada), mas do pensamento puro: pensar em palavras é imaginar seu som.


Dickens devia ser um daqueles autores que depois fizeram a fortuna das estenógrafas e dos vendedores de ditafones.  Nem sempre o autor que dita seus livros o faz com arroubos de entusiasmo.  Erle Stanley Gardner, cartesianíssimo autor, nunca perdia de vista a história nem os personagens.  Chandler, Edgar Wallace, todos ditavam para uma máquina tanto quanto Walter Scott ditava para um secretário.  Dickens não pensava em voz alta, provavelmente: tornava-se cada personagem, como num palco só dele. Quem cria assim precisa de alguém que registre.  É uma espécie de mediunidade fingida, para efeito de criação.


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