segunda-feira, 8 de setembro de 2014

3599) O personagem quis (9.9.2014)



É um dos clichês mais batidos da literatura. Todo escritor diz isso; é um aspecto óbvio da escrita da ficção. O interessante é que todos resolvam explicar sempre do mesmo jeito. 

George R. R. Martin, o criador de Game of Thrones, diz assim: 

“Pode parecer estranho para quem não escreve, mas, quando você embarca num projeto literário assim, os personagens ganham vida própria. Você se vê chegando a um ponto em que alguma coisa estava prevista para acontecer, mas o personagem não quer fazer aquilo, ele tem uma idéia melhor.” 

Quase todo clichê parte de uma verdade básica.  Se não fosse fundamentado numa verdade, teria secado e caído do galho sem ter tido tempo de se transformar em clichê. Mas para entender a explicação, a gente tem que bancar o que Nelson Rodrigues chamava “o idiota da objetividade”, e dizer: Que diabo é isso de “o personagem quis”?  O personagem não existe, meu camarada. Só quem existe aí é você.

A verdade é que o personagem é criado por camadas diferentes da mente do autor. No início ele é apenas um rosto, um nome, uma função. O autor pensa nele, inicialmente, como alguém que vai aparecer na história e executar algumas ações. É a fase de esboço, que geralmente é feita de maneira analítica, distanciada, em que o autor bola a estratégia da história como um enxadrista.  Os personagens ainda não são pessoas, e só se distinguem uns dos outros pelas suas funções, como as peças do xadrez.

Na hora de escrever, entra em atividade outro setor da mente. O autor não vê mais o personagem de fora. Tem que “entrar” no personagem, imaginar as emoções dele, os pensamentos, as motivações, os desconfortos e sensações físicas dele (cansaço, um ferimento, fome, saciedade, atração sexual, etc.).  

E quando ele encarna no personagem essa totalidade humana, projetada de dentro de si mesmo, ele é forçado a levar em conta, de maneira coerente, inúmeros aspectos humanos em que não tinha pensado de início. Quando ele diz “o personagem quis agir assim”, está dizendo: “Somente quando eu comecei a trazer o personagem para uma ação real eu percebi que se ele fosse uma pessoa, sujeita a todas aquelas circunstâncias físicas e mentais, ele agiria diferente do que eu imaginei de início”.

Martin é consciente disso, e diz: 

“Você tem que obedecer ao personagem, em última análise, senão perde o senso de realidade, e o leitor perceptivo vai ver que seus personagens são apenas marionetes manipulados por cordões”.  

O primeiro esboço do personagem é feito pela mente analítica, mas quem redige as cenas, frase por frase, diálogo por diálogo, é a alma-camaleão do autor, psicografando a totalidade daquela pessoa fictícia.


Um comentário:

Lisandro Gaertner disse...

O clichê é verdadeiro, apenas está mal enunciado. Em vez de dizer "o personagem quis", mais correto é dizer "o respeito à verossimilhança venceu o desejo do autor". Aí o personagem de certa forma quis, pois a sua imposição venceu o autor que, aparentemente, deveria estar no controle dessa empreitada. E nunca está. Afinal, de onde vem o desejo de contar uma história. Não é de forma alguma uma demanda consciente.