domingo, 7 de setembro de 2014

3598) Noites caririzeiras (7.9.2014)



Vocês não sabem o que são certas noites no sertão, no cariri.  A noite mais estrelada da minha vida eu vi há quase trinta anos, na região dos Cariris Velhos. Éramos dois (um câmera e um fotógrafo de still) trabalhando com dois agrônomos, documentando uma região que andava subjúdice. Dormíamos na fazenda de Dom Joaquim, um velho bigodudo com ingenuidades de grandeza.  Muito sol, muito trabalho, e de noite era banho, jantar e desabar logo cedo na cama. Dividíamos dois quartos de hóspedes, com luz elétrica, chuveiro, mosquiteiro (“precisa, aqui tem muito barbeiro!” disse a moça sorridente que nos entregou toalhas e lençóis).

No meio de uma noite qualquer, acordei de repente. Vozes lá fora, no pátio. Abri a banda-de-cima da porta.  Os agrônomos, chamados Velasco e Zé Guedes, estavam fumando e conversando, de bermuda, embaixo da cintilação de luzes mais espantosa, maior e mais nítida que eu, pobre urbanóide habitante da placenta fluorescente, poderia imaginar que existisse. Saímos, eu e Anacleto, o still, fomos fumar com eles.  Velasco apontou o céu: “Teve um brilho ali. Por isso que eu levantei. Como um avião passando baixo com alguma coisa acesa, mas sem som.”  Zé Guedes confirmou.

Eu sei que parece idiota, mas ficamos fumando, contando as histórias mais malucas, e eu olhando aquele céu de fogo pontilhista, a arte de coruscar no meio do nada.  Parece piada se eu disser que houve um brilho do lado de lá da colina depois do curral, e que quatro homens juntos, mesmo morrendo de medo, como era pelo menos o meu caso, sentem-se na obrigação moral de ir-ver-o-que-é?  É quase um juramento à bandeira, um rito de passagem; e fomos.  A única coisa eu lembro do que aconteceu em seguida é esta frase que repito há anos: “Foi como se um tsunami de luz nos envolvesse”.

Despertei três dias depois num hospital do Exército. Inteiro e desorientado. Zé Guedes e Anacleto já tinham tido alta. Saí dali a dois dias, depois de exaustivos depoimentos. Quando a poeira sentou chamei Anacleto e fomos falar com Zé Guedes.  Marcamos num self-service.  Pedimos chope, sentamos. Ele disse: “Alguém perguntou a vocês sobre Velasco?”.  “Não”, disse eu, que já tinha discutido isso com Anacleto. “Pra todos os efeitos, só estávamos lá nós três.”  “Estão me dizendo isso direto, e eu digo para meu chefe, caramba, era Velasco, cara, ele é mais velho do que eu, trabalha aqui há mais tempo do que eu!  Eu já vi você conversando com ele, como você vem me dizer que o camarada não existe, e que eu fui sozinho naquela viagem ao Cariris Velhos?”  Houve um silêncio, Anacleto deu um gole e disse: “Fácil demais você deletar uma pessoa no Brasil”.


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