sábado, 2 de agosto de 2014

3567) Tradutores, uni-vos! (2.8.2014)



(cartum de Samuel)

A frase me surgiu de improviso ao discutir uma questão inesperada: “Tradutores, uni-vos! Sem a gente não existia esse livro!”.  Não se pense que estou conclamando multidões à rua; basta me conhecer para saber da impossibilidade científica de tal evento. Melhor trazer outra explicação.  O “uni-vos” não quer dizer que tenham de sair à meia-noite de archote em punho ou que conquistem praças, esquadras e palácios à frente de um milhão de mujiques. Uma forma de união seria tornar mais frequente e mais pública a discussão das traduções e de suas dificuldades, até mesmo para que o público leitor entendesse o que é de fato uma tradução. (Muita gente ainda pensa que tradução é como exercício de caligrafia: já está tudo feito, e ganha nota boa quem fizer mais parecido com o original.)

OK, creio que existem fóruns de tradutores, portais de debates, de trocação de figurinhas e de lavação de roupa suja, mas o leitor em geral fica alheio a esses conciliábulos. As editoras, principalmente as que lidam com os clássicos (livros com numerosas versões) bem que poderiam desembolsar uns caraminguás extras, e contribuir para que os leitores lessem melhor. E comprassem melhor.

Uma das vantagens do texto eletrônico-digital é a possibilidade de expandir e contrair grande quantidade de texto. Podia haver uma espécie de meta-edição de clássicos em que algumas partes mais importantes ou mais obscuras pudessem, a um comando de link ou de toque, abrir janelas laterais com um certo número de traduções para vários idiomas, cada uma delas comentada, justificada, de modo a ser proveitosa a quem não soubesse o idioma original. Poderíamos ter, por inevitável exemplo, o Ulisses de Joyce em inglês, e a cada passo poderíamos ler um parágrafo do original tendo ao lado janelinhas com as respectivas traduções de Antonio Houaiss, Bernardina Pinheiro e Caetano Galindo.

Como será que idiomas mais visuais e menos analíticos do que os nossos imaginam, por exemplo, o “Ser ou não ser?” de Hamlet? Como resolvem o contraste entre essa linha inicial tão yin-yang e o jorro de imagens vívidas, sensoriais, com simbologia moral, emoções diametralmente opostas, que vem a seguir?  Quando a gente traduz, mesmo que seja uma notícia de jornal ou um trecho de entrevista, a gente traduz não somente a letra, traduz também a música, é forçado a mudar também a música do original, a sua combinação feliz ou desajeitada de vogais tônicas, as aliterações, o modo da frase se erguer no ar, dizer alguma coisa e depois deitar-se na linha novamente.  Toda frase bem escrita tem um desenho que nosso ouvido sempre reproduz, não importa se a leitura em si é silenciosa.


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