quinta-feira, 1 de maio de 2014

3487) Garcia Márquez (1.5.2014)



(Garcia Márquez, por Charles Burns)

A imprensa do mundo inteiro está dando um balanço na obra literária de Garcia Márquez, falecido recentemente. Não direi que ele era uma unanimidade junto ao público e à crítica; conheço pessoalmente gente que não gosta, que o acha meio “macumba para turistas”, um “folclorizador da miséria, como Jorge Amado” (já ouvi isto). Eu não acho. A leitura de Cem Anos de Solidão aos 20 anos mudou minha compreensão da literatura e da América Latina. Curiosamente, muitos que não gostam de Márquez são fãs de Borges.  Veem Borges como o que todo latino-americano deveria ser: civilizado, lendo latim e alemão, conhecendo a filosofia clássica e pensando de forma apolínea (Borges detestaria essa descrição, aliás injusta; é o modo como ele é visto, não o que ele era). Márquez era um escritor formado em redação de jornal, esquerdista, bigodudo, plebeu total.

Seu discurso de recebimento do Prêmio Nobel traça duas linhas paralelas de sua visão da América Latina, dando substância ao que veio a se chamar de realismo mágico. Por um lado, há os aspectos bizarros e extraordinários da realidade física e mental do continente, tudo que parece estranho aos que vêm do Hemisfério Norte e determinam o que é normal e o que não é. Por outro lado, há a espantosa desigualdade social do continente, resultado da pororoca inicial e posterior convivência entre a brutalidade do colonizador e a do colonizado (aqui se praticava a escravidão, o canibalismo, os sacrifícios humanos).

Nos seus romances, muitos detalhes atribuídos ao realismo mágico eram meras reconstituições de fatos históricos. Nisso, Márquez dava uma lição que autores tão diferentes como Tim Powers ou Bruce Sterling souberam utilizar bem: pegue da realidade o que ela tiver de mais inacreditável, e deixe sua ficção apenas um ponto abaixo. Qualquer crítico que listar as coisas mais impossíveis do enredo vai quebrar a cara ao ver que eram reais.

Na outra mão desse processo, Márquez fazia relatos jornalísticos, reconstituições de episódios reais, com os artifícios da ficção: Relato de um Náufrago, Notícia de um Sequestro, A Aventura de Miguel Littín clandestino no Chile... Alguns amigos meus (e alguns críticos literários) se queixam de que isso não é jornalismo, porque Márquez mudava detalhes, personagens ou situações para acomodá-los a sua conveniência narrativa. Muito bem, que não seja jornalismo, que seja então ficção inspirada em fatos reais. O que importa é que a volúpia narrativa está toda ali, e eu não sei se Euclides em Os Sertões ou Graciliano em Memórias do Cárcere foram mais fiéis aos fatos do que ao significado dos fatos. Há uma diferença.


3 comentários:

Carmelo Ribeiro disse...

Durante muito tempo não li Borges por considerar, tolamente, que ele seria tão "pedante" quanto alguns de seus admiradores. Até que resolvi tirar a prova: li O Aleph e nunca mais fui o mesmo. Quanto ao Gabriel Garcia Márquez? Comecei por ler o Relato de um náufrago e não parei mais. Moral da história: tolo mesmo é quem deixa de ler um deles, podendo ler os dois.

Jean disse...

Jorge Luis Borges é o Deus da literatura e García Márquez é o seu profeta.

Jean disse...

Não conheço nenhum outro escritor que tenha conseguido sujeitar o leitor a um estado de encantamento pela linguagem, como fazia Gabriel García Márquez. Na minha casa ele é unanimidade total. Talvez a única.