terça-feira, 29 de abril de 2014

3485) "A Desintegração da Morte" (29.4.2014)



Com todo esse moído em relação à Copa do Mundo, acabei me lembrando de um dos romances mais curiosos da ficção científica brasileira: A Desintegração da Morte (1948) de Orígenes Lessa.  Escrito pouco antes da Copa de 50, ele conta que um cientista chamado Klepstein consegue “desintegrar a morte” em seu laboratório (como, ele não explica) e que daí em diante ninguém mais morre, mesmo esfaqueado, fuzilado, reduzido a pasta. Continua sofrendo, e vivo. Há cenas dantescas, como é de esperar. As guerras produzem partes mutiladas que se recusam a morrer.

Lessa adota o estilo de H. G. Wells do romance com múltiplos pontos de vista, em escala planetária. (Veja-se “A estrela” de Wells, no livro O país dos cegos, e “A gargalhada” de Lessa, que incluí na antologia Páginas de Sombra).  São capítulos curtos, compactos, pulando de país em país, de continente em continente, com flashes de personagens que surgem, produzem uma cena extraordinária, e somem para sempre. Cada capítulo é um pequeno mosaico na construção de um grande painel.

E o capítulo XLII começa dizendo: “É quando se realiza em Santiago mais um campeonato sul-americano de futebol.”  (É engraçado que, em 1948, o Sul-americano de seleções, pelas rivalidades regionais, parecia motivar mais do que a Copa do Mundo.) Há um clima de antagonismo entre as seleções, relembrando campanhas bélicas antigas, Humaitá, Tacna, Arica, Monte Caseros. Na véspera do primeiro jogo, atletas de várias seleções fogem da concentração e vão ao mesmo bordel, o “La Quintala”. Um argentino e um brasileiro brigam por causa de uma mulher. No capítulo XLIII, durante o jogo, os dois se estranham. O argentino quebra a perna do brasileiro. E começa ali uma briga que se estende para fora do estádio, e pelos dois países.

O capítulo XLIV começa: “Vinte e quatro horas depois a guerra acabara. Meio Rio de Janeiro não passava de um montão de ruínas. São Paulo era escombros. Buenos Aires, menos protegida pelos acidentes naturais, plana e entregue, estava praticamente destruída. Erro de cálculo, nunca se soube se argentinos ou brasileiros tinham varrido do mapa a pequenina Assunção. Montevidéu sofrera horrivelmente. O fogo lavrava em Porto Alegre, Rosário, Córdoba, Florianópolis. (...) E milhões de seres humanos eram fragmentos dispersos, inidentificáveis, que as turmas de emergência recolhiam em carros, em caixões, em depósitos sanguinolentos.  Naquele macabro recolher de restos humanos palpitava, entretanto, o princípio trágico da vida.” Moral da história: qualquer problema que venhamos a ter com esta Copa do Mundo, sempre vai ficar aquém da imaginação dos escritores de FC.

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