domingo, 27 de abril de 2014

3484) Motes e glosas (27.4.2014)




A arte de dar motes para que alguém crie uma glosa parece hoje ser exclusiva dos que vivem no meio da poesia popular.  

Pra quem não sabe do que se trata: o mote é um tema que se propõe ao poeta, em geral sob a forma de um ou dois versos que fornecem um assunto a ser desenvolvido até completar uma estrofe de dez versos, que segue um esquema de rimas obrigatório.  

Desse modo, glosar um mote é fazer uma parceria momentânea, em que você me lança um desafio, fornecendo essas linhas (que deverão ser o final do verso, da estrofe) e eu aceitarei o desafio, improvisando na hora outros versos que desenvolvem o assunto até chegar nos versos que recebi.

Isso é a cara do Nordeste? É a cara do Brasil antigo, um Brasil que já houve, e que no Nordeste se manteve vivo, ao contrário, por exemplo, do Rio de Janeiro. 

No conto “Um erradio” (Páginas Recolhidas, 1899) Machado de Assis mostra estudantes cariocas propondo a um amigo o mote “Podia embrulhar o mundo / a opa do Elisiário” (meu comentário sobre o conto, aqui: http://tinyurl.com/nlqsjep).  

No capítulo XII (“Um episódio de 1814”) de Brás Cubas ele descreve o Dr. Vilaça, “glosador insigne”, num ritual semelhante ao que vejo ainda hoje em qualquer mesa de glosas em Campina ou no Pajeú: 

“Lembra-me, como se fosse ontem, lembra-me de o ver erguer-se, com a sua longa cabeleira de rabicho, casaca de seda, uma esmeralda no dedo, pedir a meu tio padre que lhe repetisse o mote, e, repetido o mote, cravar os olhos na testa de uma senhora, depois tossir, alçar a mão direita, toda fechada, menos o dedo índice, que apontava para o teto; e, assim posto e composto, devolver o mote glosado.”

E hoje, procurando outra coisa nas Memórias da Cidade do Rio de Janeiro (1955) de Vivaldo Coaracy, encontro este episódio saboroso: 

"Eram as freiras [do convento] da Ajuda carinhosamente benquistas pela população carioca que as tinha em alta estima. Não as impediam a clausura e a sua devoção de serem alegres. Por ocasião de certas festividades religiosas, atiravam elas, pelas janelas, rebuçados, biscoitos e outras guloseimas aos grupos que se formavam em frente ao mosteiro. Nem só doces e balas jogavam. Com frequência atiravam pelas grades do locutório papeluchos em que vinha escrito algum mote, em desafio a ser glosado por qualquer poeta presente. E nunca faltavam vates para, entre aplausos ou apupos, improvisar as glosas sugeridas”.

O Rio já cultivou esses hábitos, que nós da Paraíba consideramos tão sertanejos. Mas a roda do tempo não para. Veio a ordem... veio o progresso... e o sertão virou mar.





4 comentários:

CANCAO DE FOGO disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
CANCAO DE FOGO disse...

Realmente glosar um mote não é privilégio do povo nordestino, embora Bráulio tenha observado, de maneira muito feliz, que em nossa Região esse hábito continua vivo, ao contrário do restante do país, onde essa tradição anda meio esquecida. Mas, será que anda mesmo? Estive algumas vezes em Porto Alegre e os gaúchos adoram desenvolver suas glosas ao som da gaita de ponto. Em Minas e na Região Centro-Oeste, temos representantes da verdadeira música caipira que também gostam desse exercício. Como por exemplo, o Zé Mulato, da dupla ZÉ MULATO E CASSIANO, que anda com um caderno a tira colo sempre glosando e anotando coisas. Entretanto, creio que a forma mais sedutora (eu não diria autêntica) de glosar é no pé do balcão, com um copo de pinga na mão, fazendo de improviso. Um dia desses pratiquei esse exercício dentro de um táxi, na companhia do Mestre Azulão e do Klévisson Viana. Só faltou a bicada de cana.

Anônimo disse...

Também pesquisei e aprendi que também tem em outros países latino. Em Cuba chama pie formado e tem a mesma proposta poética do desafio.

Anônimo disse...

Digo: ...latinos...pie forzado...