sábado, 1 de março de 2014

3435) Um poema de W H Auden (1.3.2014)




É um poema intitulado “The Lucky”, e faz parte da bela série de 20 poemas intitulada “The Quest”, de 1940 (aqui: http://bit.ly/1fOrJZb).  Estruturalmente é um quase-soneto de 14 linhas com estrofes 6-6-2 (rimando ABCACB – ABCACB - DD); as linhas são de metro variável, a maioria em decassílabos (até onde consigo escandi-los de ouvido), sendo algumas delas, na engraçada nomenclatura do verso inglês, “pentâmetros iâmbicos” (di-DUM di-DUM di-DUM di-DUM di-DUM). Não traduzirei o poema.  Tentar traduzir, mantendo o sentido, um poema rimado e metrificado é como pegar um carro e querer ir ao mesmo tempo pro sertão e pra capital.

Começa pelo título. “O Sortudo” é nome de desenho animado, “O Afortunado” parece vestir um terno de linho branco. Tem um buraco na língua portuguesa para um termo tão simples como “lucky”. Auden questiona:

“Digamos que ele tivesse dado ouvidos ao comitê de eruditos: só ficaria sabendo onde não devia procurar. Digamos que o cão obedecesse ao chamado do seu assobio: a cidade soterrada nunca teria sido descoberta. Digamos que ele tivesse mandado embora a criada descuidada: o criptograma nunca teria caído das folhas do livro”. Pequenas decisões, pequenas encruzilhadas, pequenos acasos de que dependem as grandes descobertas e aventuras.

“’Não fui eu!’, ele exclamou, quando, firme e perplexo, tropeçou no crânio de alguém que viera antes. ‘Um refrão absurdo brotou na minha mente e deixou desmontada a Esfinge do intelecto; conquistei a Rainha porque meu cabelo era ruivo; essa aventura terrível é um tanto chata.”  E conclui: “É este o tormento dos que falharam: ‘Eu estava condenado desde o princípio, ou teria vencido, caso tivesse fé na graça divina?”.

Isto é um arremedo questionável do original, sem poesia, mas dane-se a poesia por enquanto. Auden era um poeta religioso com profundas crises metafísicas, destino dos poetas religiosos (como é possível crer naquilo tudo sem que a Razão esperneie de vez em quando?).  As grandes jornadas, as grandes demandas, as grandes empreitadas heróicas dependem de coincidências, detalhes, escolhas involuntárias. Nunca sabemos se nossa consagração ou nossa catástrofe são mesmo nossas.

Toda demanda, seja ela a de Frodo ou a de Quaderna, envolve esse diálogo surdo com o Invisível.  Tal como os espiões de Maugham, que nunca sabem a finalidade das ordens que cumprem. Ou como os babilônios de Borges, que agindo ou não agindo obedecem sempre às ordens da misteriosa Companhia lotérica. Mesmo quando alguém dá todas as suas riquezas, seu sangue e sua vida para obter um triunfo, ao ser festejado pode apenas dar de ombros e dizer, para que conste da ata: “Tive sorte”.

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