sábado, 15 de fevereiro de 2014

3423) A testemunha (15.2.2014)



Tive um pesadelo terrível. Eu vinha por uma rua tranquila, e dois carros bateram num cruzamento. Um deles arrancou um samboque do paralamas do outro, mas o motorista manobrou, aprumou o carro e fugiu. A motorista do outro desceu, nervosa.  Pegou a bolsa e tirou o celular para ligar. Nisso um rapaz arrebatou-lhe a bolsa e saiu correndo.  Algumas pessoas o perseguiram, mas ele subiu numa árvore, pulou um muro, acabou fugindo.  Eu me vi minutos depois numa delegacia, como testemunha.

Policial: “O senhor viu o acidente e o furto?”. Eu: “Sim, senhor.”  Ele: “Como foi?” Eu: “Ela ia na preferencial, mas o outro carro avançou, bateu no dela e fugiu.”  Ele: “Que carro era?”.  Eu: “Um carro cinzento, esse cinza-prateado.”  Ele: “Qual era a marca?”.  Eu: “Não sei.”  Ele: “Era de duas ou de 4 portas?”  Eu: “Não sei.”  Ele: “Nacional ou importado?”  Eu: “Não sei.”  Ele: “Tá bom, como era a aparência do carro, o formato dele?”  Eu: “Era um desses carros novos, desenho elegante, carro de passeio mesmo.”  Ele: “E as rodas, como eram?”.  Eu: “Tipo redondas, com pneus.”  Ele: “Quem vinha dirigindo, homem ou mulher?”  Eu: “Não olhei.”  Ele: “Reparou na placa?”. Eu: “Não.”  Ele: “Tá bom. Viu o assaltante roubar a bolsa?”  Eu: “Sim.”  Ele: “Que tipo de bolsa era?”  Eu: “Bolsa de mulher”.  Ele: “Sim, mas que estilo? Era uma dessas Louis Vuitton, ou bolsa comum?”  Eu: “Não sei bem. Pode ter sido uma Louis Vuitton comum.”  Ele: “Por onde o assaltante fugiu?”  Eu: “Subiu numa árvore e pulou para dentro de um muro.”  Ele: “Naquela calçada tem uma mangueira e um flamboiã.  Cada uma dá para um quintal diferente. Em qual das duas ele subiu?”  Eu: “Não sei, são iguais.”  Ele: “O senhor não sabe a diferença entre uma mangueira e um flamboiã?”  Eu: “Não senhor.”  Ele: “Então dane-se, pode acordar.”  Acordei.

O pesadelo consiste no fato de que eu só distingo três tipos de veículo: carro, ônibus e caminhão. Se a elucidação do assassinato de Kennedy dependesse de eu dizer em que marca de carro o assassino fugiu, estaria sem solução até hoje (como aliás está mesmo).  Alguém poderá pensar que não sou muito afeito ao mundo automobilístico por ser um sujeito simples, do interior, próximo à natureza. Mas em termos de natureza eu não distingo nada.  O meu mundo florestal se divide em três espécies: árvore, coqueiro e palmeira, e se insisto no detalhe é pelo orgulho de por volta dos 35 anos ter começado a perceber a diferença entre as duas últimas.  Daí minha admiração pelas pessoas que sabem a diferença entre um Palio e um Vectra, ou entre um juazeiro e uma acácia. Eu lhes perdoo não saberem a diferença entre André Breton e Zé Limeira.


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