quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

3402) O mulato Isaías (22.1.2014)



Isaías é um rapaz da Baixada Fluminense, gosta de ler, tem boas notas, quer tentar a carreira no Rio.  Consegue uma carta de recomendação para um deputado e vem. Na pensão, torna-se amigo de jornalistas, comerciantes. O tal deputado não se interessa em ajudá-lo. Logo as economias que trouxe se evaporam. Começa a passar fome. E ao mesmo tempo frequenta, parasitariamente, as noitadas dos amigos que “têm boas colocações”. Acaba sendo admitido como servente na redação de um jornal chamado “O Globo”. E aí começa a vingança: sua narração na primeira pessoa destrói moralmente o jornal, os jornalistas, a imprensa carioca, a política brasileira.

Diz-se que Lima Barreto fez de Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909) uma provocação ao Correio da Manhã de Eduardo Bittencourt (O Globo, de Irineu Marinho, só viria a ser criado em 1925).  Típico das muitas atitudes murro-em-ponta-de-faca do autor, o livro, que desmascarava a imprensa carioca, foi ignorado pela imprensa carioca.  É um livro cruel pelo modo quase monocórdio como o jovem Isaías, servindo cafezinhos, enchendo tinteiros, fazendo mandados, ridiculariza a pompa e a fatuidade de jornalistas abonados, muitos dos quais leram menos e conhecem menos do que o mulatinho do café.

Isaías sobe profissionalmente – tendo que levar um recado urgente ao dono do jornal, ele o surpreende num bordel, e desse dia em diante o dono começa a tratá-lo bem, fazer-lhe agrados (certamente temendo uma chantagem), até promovê-lo a jornalista.  E Isaías, que sonhava em fazer carreira intelectual nas letras e tornar-se doutor, acaba se transformando numa daquelas cavalgaduras engravatas que tanto ridicularizou.

O jornalismo e a literatura do Brasil estão repletos de antas semi-alfabetizadas, que estão somente um degrau acima do embrutecimento mental dos seus leitores, mas criam um sistema de elogios mútuos que os mantém à tona.  Isaías percebe isso e não perdoa.  Torcemos pelo mulatinho de periferia, mas ele próprio não nos poupa seu ressentimento (a cada capítulo aumenta o seu lado “não confiável” como narrador), sua inveja, seu desprezo; e quando parece que vai escorregar no maniqueísmo, ele se transforma naqueles que despreza.  O fato de ter escapado dali (são recordações, redigidas muitos anos depois) lhe dá o equilíbrio necessário para evocar aquilo tudo e poder ver à distância seus erros tanto quanto os dos outros.

Isaías Caminha é um livro brasileiro sem esforço, e atual, com sua imprensa mantida às custas de propinas políticas, suas manifestações de rua, seus intelectuais da indústria do entretenimento, suas questões mal resolvidas de raça e de classe social.


Um comentário:

Anônimo disse...

E viva a revolta do sapato!