sábado, 16 de fevereiro de 2013

3112) O mais e o menos (17.2.2013)





(Saul Steinberg)



O que é o “mais” em arte, literatura, design, etc.? 

Em geral é um “mais” quantitativo: mais formas, mais cores, mais palavras, mais páginas. Um número maior de elementos, enfim. Pode ser também um “mais” relativo à dinâmica, no sentido musical do termo: trechos executados com maior intensidade. 

Nada disso é uma qualidade em si nem um defeito em si. E isso não vale só para a música, vale em toda expressão. É a alternância entre o forte e o suave, uma maior e uma menor concentração. Um tipo de impressão estética que a música orquestral do Ocidente refinou a um grau incomparável.

O “menos” é necessário para efeito de contraste (ou seja, para que se estabeleça essa dinâmica) mas ele pode ser um valor em si, tanto quanto o “mais”, quando há fases históricas em que um deles surge para combater os excessos do outro. 

O Modernismo no século 20 foi, em muitos campos artísticos, uma tentativa de “limpar as estrebarias” atulhadas de resíduos do Barroco, do Romantismo e de outros movimentos que, por diferentes caminhos, pregavam e praticavam a exuberância, a torrencialidade, a multiplicação e acúmulo de sensações, de efeitos. 

Quando a geração de Picasso aderiu à arte africana não foi por um simples exotismo étnico, foi em busca de uma expressão mais sintética, mais direta-ao-ponto, menos dependente de firulas, babados, aquele realismo detalhista chegando à beira do fractal.

Mario Quintana, um dos nossos sacerdotes do “menos”, refere-se no poema “Retrato” (em Apontamentos de História Sobrenatural) a um velhinho “suave como os couros gastos, as madeiras polidas pelo uso, como os seixos rolados – suave e rijo!”. 

É a essência do minimalismo. Não é a mera economia de efeitos, mas uma economia voltada para a concentração, compactação, solidez.

E a verdade é que ninguém trabalha numa única escala. Todo mundo flutua, ao longo do processo criativo, entre momentos-do-mais e momentos-do-menos, como uma orquestra tocando o “Bolero de Ravel” ou uma banda tocando “Stairway to Heaven”. 

Quando escrevemos de verdade, mergulhados no texto e só no texto, sem perceber o que acontece à nossa volta (jogo da Copa, incêndio no prédio, virose no bebê), sabemos quando o texto nos pede três páginas de catadupa verbal em parágrafo único ou um simples bloco de três linhas com cada palavra escolhida após longa deliberação (o que às vezes nos pede mais tempo do que a outra opção). 

Escrever prosa de ficção exige talentos de maestro – o conhecimento dos naipes disponíveis, o saber intuitivamente onde empregar o quê, e principalmente a dinâmica entre o poderoso e o delicado, o transbordante e o contido, a holoilustração em 3D e a foto 3x4.










3111) Ser escritor (16.2.2013)






Volto a lembrar a frase famosa de Ferreira Gullar: “A pior coisa de ser poeta é convencer sua mulher de que, quando você está sem camisa, debruçado na janela, fumando um cigarro e olhando lá pra fora, você está trabalhando”. O lado positivo é que qualquer vagabundo pode adotar essa atitude e defender-se dizendo: “Não me atrapalhe, estou escrevendo um poema”. Corolário: na dúvida, julga-se um poeta não pelo seu comportamento pessoal, mas pelos textos que produz. Ponto final.

Para romancistas ou redatores de obras de maior espessura o debruçar-se à janela não adianta muito. É possível conceber um poema apenas pensando, mas um romance de 300 páginas eu duvido. Em todo caso, não há muita diferença (do ponto de vista da família de um cidadão) entre um marido-e-pai que passa o dia fumando na janela e um marido-e-pai que passa o dia trancado num gabinete, digitando sem parar. São dois indivíduos ausentes, e um processo por abandono do lar pende como espada de Dâmocles sobre suas cabeças, eternamente, porque não basta a presença física. Família que interagir, crianças querem brincar, filhos maiores querem um dedo de prosa, a esposa quer aconchegos e afagos. E o sujeito se obstina em trancar a porta e passar o ferrolho por dentro, dizendo: “Não atrapalhem, estou criando uma obra-prima”. Muita pretensão.

Conversei uma vez num lançamento com a esposa do autor, que ao meu ver elogiar profusamente a obra do marido me agradeceu mais profusamente ainda. Era uma senhora com pés na terra, pão pão, queijo queijo, e me disse: “Eu não entendo nada do que ele escreve, e sou muito sincera, só percebi que ele era importante quando vi o que vocês jornalistas escreviam sobre os livros dele”. É aquela situação meio melancólica da mulher surda que casa com um pianista de concerto. Por mais que ele conquiste prêmios e viaje para tocar com a Sinfônica de Moscou, ela vai sempre ficar roendo um grão de dúvida. “Por que será que o valorizam tanto?...”

O escritor alcança seus maiores triunfos na solidão um escritório. Ele finaliza, de madrugada, o melhor conto que escreveu nos últimos dez anos, e não tem a quem mostrar. A casa está silenciosa. A família dorme; mesmo que seja acordada para participar dirá “Hum-hum, maravilha, boa noite”, e virará pro outro lado. Resta ao escritor ir à geladeira, pegar uma cerveja, debruçar-se na janela e comemorar a façanha ouvindo estrelas. Menos mal, não é mesmo? Existem vocações piores. A certeza do dever cumprido e da “Última Ceia” com tinta ainda fresca deve bastar para reconfortá-lo; e se tem uma coisa no mundo que nunca vai faltar é cerveja na geladeira e estrela no céu.