quinta-feira, 31 de outubro de 2013

3331) Ghost Watchers (31.10.2013)



“Ghost Watchers” é um clube criado em 1998 por um grupo de entusiastas do espíritismo. Não pertencem à religião espírita; são indivíduos que tratam a mediunidade, a vida após a morte e a comunicação com os espíritos de maneira científica, pragmática. 

Investem nas faculdades mediúnicas (que têm de nascença) com o auxílio de drogas legais, disciplinas, exercícios de atenção e de concentração. 

Ficam sensíveis à presença do ectoplasma, de cujas manifestações, dizem, o mundo está cheio, mas são tão irreais para nós quanto um arco-íris para um cego.

Existem reservas de espíritos em determinadas regiões, assim como reservas de pássaros em certas áreas no campo. Na noite em que entrevistei membros do grupo, eles estavam concentrados, passeando como se fossem turistas, no quadrilátero de quatro esquinas: o vetusto hotel, a praça confortável, o cinema outrora imenso, e uma fila de restaurantes lado a lado. 

Fizemos uma visita guiada. Meu favorito foi um menino com a camisa de um time de futebol (que nenhum de nós sabia qual era), fazendo proezas na faixa de pedestres enquanto os carros o trespassavam como a um holograma. Numa alameda lateral da praça vimos desfilar um casal, a mulher com um bebê vistoso ao colo, o homem com chapéu panamá e bengala de castão. Também registramos a presença de uma moça com a blusa aberta, o cabelo preso, rindo e falando num orelhão invisível, ou que talvez não existisse mais ali.

A ruela lateral do teatro é uma mina, porque para ali convergem, mecanizados pelo hábito ou atraídos pela concha repleta de calor humano, todos os vagabundos invisíveis que não entendem direito o que está se passando. 

Vi um exemplar de flashers, aqueles espectros que surgem de repente, tornam real uma cena incrivelmente vívida, e somem logo sem deixar rastros, consumida toda a energia que tinham. 

Vi um Ecto-penitente, que se gruda ao braço dos passantes e o acompanha desfiando seu rosário de penas, cuja depressividade a vítima acaba assimilando sem ter noção do que lhe acontece.

Na segunda noite (de um sábado para um domingo), vimos um número maior, porém menos nítido ou menos focado. Casais de namorados, grupos de amigos abraçados, cantando rua afora. Pessoas conversando baixinho durante horas. 

Explicaram-me que, ao contrário da crença popular, os fantasmas ficam revivendo seus momentos felizes, não vêm pedir nada, prantear nada. Vem visitar este mundo porque é aqui que deixaram gravadas suas lembranças. “É como se o mundo,” disse-me ele, “fosse o suporte onde estão aprisionadas as lembranças deles, e eles ficassem girando nelas, e assim se tornam eternos”.




quarta-feira, 30 de outubro de 2013

3330) Por que não deu certo? (30.10.2013)




(by Niki Feijen)


Até agora não entendo. 

Tudo era céu de brigadeiro e mar de almirante. Tudo fluía sem solavancos, tudo se encaixava com um clique sólido e controlado, e daí em diante era apenas seguir o manual, ir conforme o figurino, não inventar, fazer o feijão com arroz, tocar a bola no meio de campo e esperar que os mecanismos continuassem no tiquetaque reconfortante de tudo que se desenrola de acordo com o planejado. 

E era tão bom olhar o horizonte e imaginar mil horizontes de possibilidades, um leque de possibilidades felizes competindo entre si por nossa atenção.

Falta de esforço não foi. Não foi por falta de suor físico e de angústias mentais. Nem por falta de insônias,  naturais ou provocadas por agenciações químicas de toda ordem. 

Também não foi por falta de sono, esse eterno bom conselheiro, esse apaziguador de tormentas, só que no presente caso o solvente universal não funcionou e na manhã seguinte o enorme pedregulho continuava intacto e parecia até mais cheio de arestas. 

Tentou-se tudo, e de todo jeito. Não deu certo.

Quando as coisas não dão certo, até os mais encarniçados resolvedores-de-problemas precisam se conformar com o irremediável, precisam engolir o sapo, assimilar o golpe, administrar a dor, aceitar que de agora em diante o argueiro faz parte do olho e o tigre vai morar com a gente. 

E não deixa de ser divertido observar como um Himalaia de argumentos começa a ser transferido de lugar para re-equacionar a conjuntura, e o dicionário está cheio de rasuras e borrões pois as palavras estão mudando de significado.

É difícil ter paciência para enfrentar as intermináveis perguntas alheias, porque os sucessos nunca despertam tanta curiosidade quanto os fracassos; e quando se espalha a má nova de que uma empreitada qualquer deu com os burros nágua e a vaca no brejo, orelhas se empertigam em volta do mapa múndi, olhares se dirigem todos para a vítima indefesa ou para o réu sem fiança. 

Todos querem saber por que foi, como foi, como não foi, o quê que aconteceu, o que poderia ter sido feito e não foi, o que não deveria ter sido feito e acabou sendo. 

Nos olhos dos perguntadores brilha a ansiedade em recolher lições e aplicá-las em seu próprio futuro, e a cintilação maligna de quem, enquanto anota, vai pensando: “Tá vendo? Bem feito”. 

É duro quando não dá certo, chega a dar vontade de dizer que a alegria do possível êxito não compensa o risco da depressão pelo possível fracasso, mas quem somos nós para dar conselhos – porque se nosso conselho valesse de alguma coisa era justamente porque somos alguém capaz de fazer as coisas darem certo. E dessa vez – é pena! – não deu.



terça-feira, 29 de outubro de 2013

3329) Lou Reed (29.10.2013)



(foto: Lou Reed)

Vivemos celebrando roqueiros como Janis Joplin, Jimi Hendrix, Amy Winehouse, que viveram todos os seus 27 anos no fio da navalha. O que dizer de quem estendeu esse prazo até os 71?  Lou Reed foi no rock a cara de um decadentismo high-tech que juntava rock americano com vanguarda poética fin-de-siècle, uma cultura da dissipação, um hedonismo dark.  Ao mesmo tempo, pegou carona na estética da androginia e do livre-amorismo dos beatniks e dos hippies que o antecederam. Seu primeiro grande voo foi sob a asa do rei da vanguarda dândi, Andy Warhol, e seus últimos anos foram vividos ao lado de Laurie Anderson, uma performer-pop que podia fazer-lhe frente, com luz e estética próprias. 

Era um cantor limitado mas bastava-lhe cantar um minuto para o ouvinte entender que os critérios ali eram outros. Quando em “Walk on the Wild Side” ele diz: “and the colored girls say / doo doo dooo...” é como se a música ainda não estivesse pronta e ele a estivesse mostrando a um amigo, descrevendo o que elas fariam neste trecho. Há um livro de Philip K. Dick em que o cara para diante de uma barraca de refrigerantes e quando vai fazer o pedido a barraca desaparece e fica em seu lugar, no chão, um papel onde está escrito: “Barraca de Refrigerantes”. Lou Reed diz: “Aqui, as morenas fazem du-du-du...”

Um jornal de São Paulo registrou no saite, durante o domingo: “Morre o guitarrista Lou Reed”. É um pouco como dizer “morre o dançarino Renato Russo” ou “morre o pandeirista Ringo Starr”. Reed tem uma frase famosa, que diz mais ou menos: “Uma música com um acorde está ótima, com dois está tudo OK, com três a gente já está entrando no domínio do jazz”. Uma estética não muito diferente da de Erasmo Carlos, que dizia algo assim, “três acordes e deixa que eu me viro”.

Poeta de vários estilos mas sempre à vontade nos domínios do Beat, da cultura que tenta juntar esses dois extremos: excesso e refinamento. Tinha interfaces poéticas com Ginsberg, tinha algo da autodestruição contemplada de Bukovski. Tem algo do ascetismo tecno-gótico de William Gibson, mas com uma carga de erotismo que em Gibson se manifesta pouco. Nunca pareceu levar o rock excessivamente a sério, mas ao mesmo tempo levou-o o bastante para ficar rico com ele, e para que os que gostam de rock o reconhecessem como um dos seus.

Morreu após um transplante de fígado, aos 71 anos. Para quem se aplicou quase todo tipo de droga e de excesso que lhe foi acessível, é uma façanha comparável aos mais de 80 anos de William Burroughs. Um dia, a longevidade dos nossos roqueiros causará espanto e incredulidade num mundo futuro em que gente assim jamais ultrapassa os vinte e cinco.


domingo, 27 de outubro de 2013

3328) Uma tarde de domingo (27.10.2013)




Dona Valquíria abriu o forno, tocou na pizza com um garfo e calculou mais dois minutos. Fechou o forno e foi até a sala. Checou o relógio da parede e viu que faltavam cinco minutos para o maldito futebol. Seu Elói estava diante da TV: ajeitou as almofadas, depois colocou o controle remoto do lado direito, a lata de cerveja (ainda fechada) sobre a mesinha, começou a limpar os óculos da beira da camiseta. “Perdi a hora”, pensou ela, “era pra ter ligado o forno uma hora atrás, mas Vilminha me telefona logo hoje para dizer que o avô morreu”. (What kind of atmosphere do you think the author wants to create? What is the story going to be about? What kind of story might it be? What are the most important things you have noticed so far?) 

“Quem joga hoje, amor?” perguntou ela por mera diplomacia. “Adivinhe”, murmurou ele, olhos aparafusados na tela. Ela sentou no sofá, pousou a mão no joelho dele, olhou a tela disposta a participar. Tudo por um domingo sem tensões, pensou ela. Seu Elói abriu a Skol, a espuma espirrou, ele virou um gole e disse: “Toda a história da humanidade foi um preparativo para hoje à tarde. É hoje ou nunca. Ou a gente ganha ou eu vou enfartar.” (Have your expectations changed at all?  What words begin to increase the tension of the story?) 

Dona Valquíria sorriu e disse, “Ah, Elói, lá vem você com drama. É só um jogo.” Ele deu um gole, beijou o rosto dela e disse: “É o jogo da classificação, deixa eu ficar alegre antes, porque não sei como vou estar depois.” “Tudo seu é um drama”, disse ela retribuindo o beijo, e foi conferir o forno. (What do you think will happen now? Is there more tension now? What has caused it?) 

Ela trouxe dois pratinhos, com talheres, e duas fatias triangulares de pizza. “Calabresa,” pediu ele, de olhos na tela, onde a bola já rolava. Ela olhou a imagem, perguntou: “O jogo é aqui em Campina?”. Ele: “Não, é lá no chiqueiro deles”. “Vamos cruzar os dedos,” disse ela, mastigando e sinceramente torcendo para o Treze ganhasse. “Incrível,” pensou ela, “como os homens se deixam arrebatar por uma narrativa coletiva... Vou ver o jogo, e 2ª.feira faço algumas brincadeiras com meus alunos... Tem que haver uma ponte para atrair esses meninos de hoje para a Literatura Inglesa do Século XIX.  Quem sabe vendo futebol eu consigo entender melhor o elemento épico ou trágico em Joseph Conrad ou em Kipling?...” (What did you think of the last line? Is the ending hinted at earlier in the story in any way? Did you enjoy the story? Does the ending raise more issues, or close the argument? Is it a story you will remember? If so, what are the elements that make it memorable?)


sábado, 26 de outubro de 2013

3327) Hotel Glória (26.10.2013)




Faço tantas críticas ao capitalismo nesta coluna que em breve vou despertar a desconfiança do FBI, o qual rapidamente avisará a nossa Polícia Federal. Meia dúzia de agentes vestidos de Arquivo X irão se debruçar sobre as páginas do meu blog Mundo Fantasmo e, depois de uma noite insone cheia de café e cigarros, concluirão: “Ele simpatiza com o comunismo”. Certo e errado. É certo que simpatizo com esse nobre movimento. Mas é certo também que simpatizo com o Anarquismo, o Surrealismo, a Música Barroca, a Mecânica Quântica, a Poesia Concreta, a Pintura Abstrata, o Rock Progressivo e uma porção de outros movimentos que para mim são até mais importantes do que as idéias de Marx, Engels, Brecht, Maiakóvski e Chico B.

Reli o parágrafo anterior e percebo que já estou lá na esquina. Melhor voltar. Minhas críticas ao capitalismo não pretendem substituí-lo por outro sistema econômico, porque na minha idade acho que não me adaptaria. Sou capitalista, e, como certos peixes de água salgada, não sobreviveria em água doce. Mas até mesmo por compartilhar esse destino já sei que o capitalismo é um Titanic destinado ao plâncton submarino, e não ao porto de Nova York.

Irei direto ao ponto: o Hotel Glória, do Rio de Janeiro. É a mais recente vítima do bipolarismo capitalista num país indefeso como o nosso. Aqui, qualquer sujeito capaz de pedir um vinho de 2 mil dólares num jantar põe Governos, Ministérios e Congressos aos seus pés. Foi o caso do trêfego Eike Batista, que construiu um castelo de fumaça, um transatlântico de papel, uma pirâmide de gelo, e convenceu Deus e o mundo de que era um dos homens mais ricos do mundo. O mundo acreditou, e avalizou todos os seus projetos; Deus fez valer a voz da razão, e transformou tudo em cinza e debêntures.

O Hotel Glória, que visitei inúmeras vezes, era um dos edifícios mais nobres e interessantes do Rio de Janeiro. Eike, no auge da própria onda, incumbiu-se de reformá-lo para a (fatídica) Copa do Mundo. A revista Piauíde outubro registra: “Em 2010, o BNDES liberou 146,5 milhões de reais do fundo ProCopa e teve início a reforma misteriosa. (...) Detalhes do novo desenho só vieram a ser divulgados em abril de 2012, quando os custos da reforma já eram estimados em 300 milhões de reais. (...) O hotel (...) hoje está à venda por 225 milhões de reais (...). Do charmoso prédio neoclássico sobrou um gigantesco canteiro de obras em fase de desmanche”. Foi maldade? Não, porque o capitalismo não é necessariamente mau. O capitalismo – esse capitalismo de hoje, viciado em zeros e “ões” – é bêbado. Dinheiro é a mais viciante das drogas, e, pelo que se vê, a mais desorientadora de todas elas.


quinta-feira, 24 de outubro de 2013

3326) Memórias de um Mágico (25.10.2013)






“A mão é mais rápida do que o olho,” disse ele. Ergueu as mãos de dedos longos; mostrou as palmas, vazias, depois o dorso delas, com veias grossas e manchas marrons. Começou a encher o cachimbo, enquanto eu me servia de outra taça de vinho. Ele continuou: “Quando eu tinha nove anos, estava com minha família num restaurante de Marselha. Havia um copo vazio perto da borda da mesa, e ao gesticular eu bati nele com a mão, assim.”  Fez um gesto rápido, como de quem esbofeteia uma criança.  Soltou uma baforada e sorriu. “Peguei o copo antes que tocasse o chão. Ninguém queria acreditar no que tinha visto.”  Eu sorri e disse: “Foi verdade ou foi truque?”  “Verdade,” disse ele, “porque sempre fui rápido. Sabe por quê? Porque fazia antes de pensar. O olho via, a mão agia.  Esperar pelo cérebro seria fatal.”

Corri os olhos pelo salão com paredes cobertas de cartazes, onde o rosto e o nome dele apareciam numa variedade de cores, formas, fotos, desenhos, em mais línguas do que eu era capaz de decifrar. “Mas,” disse ele, “voltando ao que falamos há pouco, não há muita diferença entre tirar da cartola um coelho ou um pássaro. Os dois são difíceis. Sempre é difícil lidar com seres vivos. O resto... pufff!” Com a interjeição, tirou do fornilho aceso do cachimbo um filete de água cristalina, trouxe-o pendurado entre as pontas do indicador e do polegar, como uma fita, e o fez enrodilhar-se dentro de um copo vazio. Estendeu-me. Bebi sem hesitar. Era água limpa, fresca.

“Fogo, água, terra, ar, substâncias comuns ao nosso mundo como pano, papel, madeira ou metal... Tudo isto é fácil.” Ele cerrou os dedos, e ao abri-los tinha na palma da mão uma moeda de cobre com meu nome e meu rosto gravados. (É uma das lembranças dele que guardo até hoje.) “Pode publicar isto na sua revista,” continuou, “porque seus leitores o olharão como meu pai me olhou naquela noite”. Tossiu, deu um gole de vinho, voltou a fumar.

Prosseguiu: “Há pessoas capazes de ler pensamentos, de levitar, de mover coisas com a mente... Eu não. Eu produzo coisas que segundos atrás não existiam, mas tenho que usar uma cartola, um lenço colorido, um biombo – senão, ninguém acreditará no que está vendo.” Tirou da taça de vinho um rei de ouros gotejante, amassou-o, entregou-me uma chave idêntica à do meu carro. “Para fazer mágica, é preciso contar com a expectativa do público pela mentira, pelo truque. Se eles descobrissem que é tudo verdade, apedrejariam o mágico e incendiariam o teatro. É melhor que acreditem numa verdade mais confortável – por exemplo: que a mão é mais rápida do que o olho”. Estendeu-me a mão aberta: na palma dela um olho se abriu, e piscou para mim.


3325) Seu Nilo (24.10.2013)






Meu pai se gabava de ser capaz de passar 24 horas recitando de memória sonetos dele e de seus poetas preferidos (Olavo Bilac, Emilio de Menezes, Augusto dos Anjos) e inúmeros outros. 

Quando eu tinha 8 ou 10 anos, nas paredes da nossa casa havia, emoldurados, um retrato a carvão de Castro Alves, a reprodução de uma foto de Lampião, uma página de revista com uma foto de Bilac e o soneto “Dualismo” (que ainda sei de cor), uma foto de meu avô Braulio, que não cheguei a conhecer.

Tinha somente o curso secundário, foi tipógrafo, encadernador (ainda tenho livros encadernados por ele), funcionário público (foi chefe de gabinete de três reitores da URNe, atual UEPB), jornalista e radialista (na Rádio Borborema e Diário da Borborema, principalmente). 

Era organizadíssimo, “caxias”, muito severo com os funcionários, mas muito justo. Nos fins de semana, era um grande boêmio, bebia bastante, gostava de se cercar de gente alegre. 

Era desafinado e não cantava, mas o terraço da nossa casa vivia cheio de gente tocando violão e cantando; ele se limitava a acompanhar, batendo com uma faca numa garrafa. Gostava de fazer paródias de músicas conhecidas e em casa improvisava um soneto sobre qualquer bobagem que acontecia, o que divertia todo mundo.

Torcia pelo Sport do Recife (a cidade em que cresceu), pelo Flamengo, e pelo Treze; eu herdei essas três paixões. Temos fotos dele ao lado de Dida (do Flamengo) e de Telê (do Fluminense) quando esses times jogaram em Campina Grande. 

Colecionava revistas de futebol (Manchete Esportiva, Revista do Esporte, Gazeta Esportiva Ilustrada), encadernadas;  encadernou também tudo que conseguiu juntar sobre as Copas de 58 e 62. Esse material acabou se perdendo devido ao mofo, pois nossa casa no Alto Branco era muito úmida. 

Também colecionava dicionários, porque era charadista e enigmista, colaborador de muitas revistas Brasil afora sob o pseudônimo de Pequeno Polegar (era baixinho).

Não ligava muito para cinema. O único filme que o vi elogiar foi Ziegfield, o Criador de Estrelas, e seu ator preferido era Edward G. Robinson. 

Gostava de ler Coelho Neto, Humberto de Campos, Guerra Junqueiro, bem como folhetins (Ponson du Terrail, Michel Zevaco, Xavier de Montepin) e romances policiais tipo Shell Scott. 

Gostava de trabalhos manuais, de mexer com serrote, martelo, etc. Durante muitos anos teve um mimeógrafo no quarto dos fundos, com o qual ganhava a vida imprimindo boletins, quando estava desempregado. 

Eu me habituei a chamá-lo de “Seu Nilo” desde pequeno, e esse tratamento ficou para o resto da vida. Meu pai completaria hoje, 24 de outubro de 2013,  cem anos de idade. Agora, tomarei uma em sua memória. Tin-tin!







quarta-feira, 23 de outubro de 2013

3324) "Sanitário" (23.10.2013)




O que leva as pessoas a fazer revistas de quadrinhos? Não rende dinheiro (pelo menos não nos primeiros dez anos). Dá um trabalho enorme, é esnobado por alguns intelectuais, é ignorado pela imprensa... Bastariam estes sintomas para provar que as HQs são uma forma de arte pela arte, feita por gente que descobriu que 1) sabe fazer aquilo; e 2) gosta de fazer aquilo. E isto são condições necessárias e suficientes para fazê-lo.

Sanitário (revista HQ de Campina Grande – www.coletivowc.com.br) está cheia desse entusiasmo nos seus roteiristas e ilustradores. Humor, imaginação, uma dose do cinismo e da brutalidade que são “o Espírito do Tempo”, e com os quais temos de conviver, porque os tempos agora são assim. A revista lançou dois números temáticos: 1) “O Mundo Ainda não Acabou” e 2) “Grandes Monstros da Humanidade”. Alguns têm mais técnica; outros, têm idéias mais surpreendentes, mesmo que a técnica ainda seja na base da tentativa.

Em HQ, a idéia é essencial. A história tem que ter interesse, os personagens não podem ser apenas ilustrações do texto. Os diálogos têm que ser uma destilação e concentração do que seria dito, pra não perder tempo. Muitas vezes o cara tem isso, sabe fazer isso, mas não é um grande desenhista. A solução, ao meu ver, é transformar suas limitações em qualidades. Ao invés de tentar desenhar com A ou B, concentrar-se nas virtudes que tem (seja traço, seja enquadramento, seja textura, seja figurativismo bem resolvido... o que for).

No universo brasileiro da HQ, da tirinha, do cartum, existem grandes desenhistas, de técnica refinada: Laerte, Mike Deodato, Mutarelli, Shiko, Rafael Grampá, Fábio Moon & Gabriel Bá... Cada um desenha de um jeito totalmente diferente dos outros, mas todos tem o que em música a gente chama “domínio do instrumento”. Por outro lado, alguns dos melhores quadrinhistas atuais são pessoas que tecnicamente ninguém chamaria de grandes desenhistas: Bruno Maron, Alan Sieber, André Dahmer, além de mestres de uma geração anterior, como os falecidos Henfil e Glauco. Não têm “essas técnicas todas”, mas, por-cima-de-pau-e-pedra, cada um criou um estilo pessoal.

Estilo é a tensão entre o que a gente sabe fazer muito bem e o que a gente não consegue fazer de jeito nenhum. Um Henfil não tem a mesma técnica figurativa de um Laerte, mas isso não importa, porque ele é capaz de dizer tudo que quer usando aquilo que tem. Entre a rapaziada do Sanitário há quem domine a técnica “oficial”, há quem esteja inventando uma técnica própria, e há que esteja na encruzilhada entre as duas coisas. É a foto da nuvem, de um momento que não se repetirá, porque cada um irá numa direção diferente.


terça-feira, 22 de outubro de 2013

3323) Eike Batista (22.10.2013)




Eike Batista é um personagem épico dos nossos tempos, e não digo isto com ironia, ou melhor, a ironia evidente da frase tem como vítima os tempos, e não o valoroso cavalheiro-de-indústria. Há pouco tempo ele era o sétimo homem mais rico do mundo, o mais rico da América Latina, e agora, pelo andar da carruagem, em 2015 vai estar me pedindo dinheiro emprestado.

A trajetória de Eike tem tudo a ver com os nossos tempos, os tempos de riqueza virtual, sem lastro físico na produção, um ouro feito de tinta, uma fortuna feita de zeros e cifrões em tal quantidade que hipnotizam avalistas e fiadores incautos. Já tivemos grandes empreendedores brasileiros, desde o Visconde de Mauá até Delmiro Gouveia, homens que quebraram a cabeça e deram a vida para fazer deste país uma grande potência de acordo com os critérios deles. Mas Eike talvez esteja sendo (sua epopéia está longe de ter se encerrado) o que mais de perto corresponde a uma faceta essencial do caráter brasileiro, aquela que sempre sonha com um passo mais largo que as pernas, aquela que sempre conta com o ovo no cu da galinha, aquela que comemora a vitória futebolística com a bola ainda rolando e o placar em aberto.

Em 2012 Eike tinha uma fortuna avaliada em 30 bilhões de dólares; quebras e fracassos sucessivos de suas empresas geraram um efeito dominó que reduziu essa fortuna a 200 milhões, em julho deste ano. No espaço de menos de um ano e meio, ele perdeu 99% do que tinha. E isto não significa apenas que ele tinha dinheiro e agora não tem mais. Grande parte do dinheiro dele tinha dono. Era de outras pessoas (acionistas, credores, emprestadores, etc.), e sua fortuna mudou de sinal, o “Deve” engoliu o “Haver” e ameaça engolir, como um black hole cósmico, o próprio aventureiro.

Eike parece aquele rapaz do conto “A nota de mil dólares”, sobre o qual já escrevi nesta coluna (aqui: http://bit.ly/1cEtmtA). Um rapaz acha na rua uma nota de mil dólares e, crendo-se rico, tem um surto de dinamismo e incendeia (no bom sentido) a economia da cidadezinha onde vive. Depois percebe que a nota era falsa, mas o bem já estava feito: a cidade agora está fervilhante de atividade. É o caso de Eike, coitado. No caso dele, não foi bem uma nota, foi algo como um cheque de mil dólares que ele preencheu, assinou, e foi passando adiante. Milhares de fiéis, entre eles o governador e o prefeito do Rio de Janeiro, ajoelharam-se diante desse talismã e abriram as carteiras. Voilà! – o cheque não tinha fundos. Mas – convenhamos – quando uma catástrofe acontece, que seja grande, que seja épica, que seja uma história para se contar aos netos. Eu já estou começando.


domingo, 20 de outubro de 2013

3322) Na moral, véi (20.10.2013)





Na moral, véi, pra que essa zueira por grana. Grana serve pra quê, meu irmão? O jornal trata um caba rico como se ele fosse o filme do osca. Só falta deitar no chão e mandar passar por cima. Eu, hein. É rico hoje, fica pobre amanhã. E riqueza tira o sono. O caba tem medo de ser assaltado, tem medo do banco dele falir, tem medo até de comer uma dessas meninas das revista e depois ter que fazer deniá e pagar pensão. 

Dinheiro é mel que traz mosca. O caba vive num iate, beleza, iate de trinta milhão, beleza, aí o iate dá um tombo de banda, o cara cai por cima da paredinha, e lá embaixo tem um tubarão que tá esperando por ele desde Pedro Álvares Cabral. 

Eu não invejo dinheiro. Vivo por aqui passando bem, e pão com sardinha nunca fez mal a ninguém. E daí, o cara tem camarote no show da Madona? Eu escuto o show da Madona aqui no meu radin. E não preciso ver a Madona com as coxa de fora, minha mulher tem duas coxa igual a da Madona e dá menos trabalho do que ela. 

Eu, hein. O caba dá 2 mil reais numa garrafa de vinho e quando acabar o otário sou eu. O caba vive viajando de jatinho pra discutir contrato em Dubai e quando acabar o estressado sou eu. Agora pergunta quem é que tá assinando o ponto na patroa dele enquanto ele está em Dubai. Eu sou um lascado? Sou, sou um lascado, se lascado é quem não anda de bemidáblio e não deve ao imposto de renda. 

O sol nasceu pra todos, mas quem não quer bronzear não bronzeia. Eu não preciso de tudo que um rico precisa. Rico começa ambicioso, porque a conta do ter nunca enche, mas depois acaba necessitado, porque afunda o navio, o poço de petróleo seca, e lá vai ele pro comprimido. 

Me considere, rapaz. Quero lá ser rico. Rico quando fica velho pinta logo o cabelo com chá-mate. Rico é inseguro, é travado, é medroso. Se ele tossir de mau jeito a Bolsa de Valores perde o fechicler. Na moral, véi. Minha vida é pequena mas é minha. Não quero ser rico. Eu evito até jogar na Mega-Sena. 

Pobre pode ser um cara que precisa arrastar um trem a vida inteira, mas um rico é um cara que tem que correr a vida inteira porque o trem tá arrastando ele. 

Rico pensa que é dono do mundo, e não é dono nem dele mesmo. Tem casona e não mora nela, tem dinheiro e não tem tempo de gastar, come do bom e do melhor mas tá o tempo todo pensando no câmbio, no paraíso fiscal, no mercado futuro. 

Na moral, véi, eu olho um rico e vejo um robô, um zumbi, um cara-de-paletó sempre atrasado, sempre sorrindo, sempre nervoso, um cara com uma doença que faz ele precisar sempre do muito, do mais, porque no dia em que ele tiver só o suficiente ele dá um pipôco, dá um curto-circuito, e vira pó de peido.












sábado, 19 de outubro de 2013

3321) A ex-música (19.10.2013)




A ex-música é aquela que a gente compôs um dia cheio de inspiração, cantou com entusiasmo, mas com o passar do tempo foi ficando datada, foi ficando ultrapassada, e depois de certa altura não nos retratava mais. 

Começou a ficar estranha com a passagem do tempo. Começou a perder o jeito, a soar de uma maneira incômoda. Era uma música tão legal, e agora, sem mudar um verso, ficou parecendo um monstrengo.

De que maneira uma música se torna ex-música? Afinal, ela continua existindo! Não foi deletada do Hd do mundo, ainda toca no rádio se foi gravada, ou é pedida pelos amigos quando não foi. Continua igual ao que era antes. O que mudou foi a reação que desperta no autor. Algo que ela fazia vibrar não vibra mais. Algo que ela continha foi esvaziado por uma fresta invisível e sumiu para sempre. 

A música não mudou, mas a pessoa que a fez não é mais a mesma, é, agora, uma pessoa que não gosta dela.

Em geral isso acontece porque o autor acha que evoluiu, e que a ex-música denuncia o quanto era incompetente e imaturo naquela época. Pode ser pelo uso de gírias que hoje estão datadas e constrangedoras, soando grotescas aos ouvidos contemporâneos. Pode ser a expressão de sentimentos líricos ou de posições ideológicas que o autor preferiria esquecer. Pode ser porque denuncia o quanto eram quadradões nossos acordes, previsíveis as nossas rimas. Pode ser porque hoje ficam evidentes as nossas intenções imitativas em relação aos sucessos daquele tempo. 

Tanto faz. Cada caso é um caso, mas certos casos são casos perdidos. Uma ex-música é um caso que chegou ao fim, que foi cortado rente ou que foi deixado para definhar devagarinho no silêncio e na distância.

A ex-música, porém, se recusa a morrer. Está viva nos outros, mesmo que defunta no ex-dono. É preciso, portanto, aceitar sua condição morta-viva, sobrevivente póstuma de si mesma, e recebê-la bem quando ela se aproxima, cantada por um amigo incauto, tocada numa festa, recordada numa entrevista ou numa roda de violão. 

Melhor não revelar a ninguém a condição em que ela se encontra dentro de nós, inclusive porque tocar nesse assunto em público seria entreabrir um sarcófago cujo conteúdo é melhor deixar quieto. Melhor tratá-la como uma música qualquer, tocá-la quando pedirem, cantar sem sabotagens, demonstrar naturalidade. Permitir regravações, porque afinal se um dia ela nos disse alguma coisa talvez esteja a dizê-la agora a outros, e quem é um simples autor para governar esses diálogos? 

A gente deixa de ser dono daquilo que mostra aos outros. Uma ex-música é algo que foi embora da gente para sempre e se exilou na memória alheia. Que fique por lá, e que seja feliz.







sexta-feira, 18 de outubro de 2013

3320) Black Blocs (18.10.2013)




Quando eu era jovem ficava perplexo vendo os mais velhos se queixarem da violência do mundo. Violência? Que violência? À minha volta eu via som e fúria, mas nunca pensei que no mundo existisse outra coisa. Hoje – válvulas piscando, bielas batendo, lataria sacolejando – qualquer som me incomoda e qualquer fúria me enfurece. Talvez porque os jovens sejam feitos de energia zunindo nos neurônios e fervendo nas artérias. Pra quem é jovem, furacão é brisa. Quando a idade vai impondo seu ritmo de jogo, o ex-jovem claudica, bambeia, percebe que o campo no 2º. tempo tem o dobro do tamanho que tinha no primeiro.

Isto, contudo, são os balõezinhos verbais que se formam na minha cabeça quando estou com a mente de pijama. Vestido para a luta literária (tênis, jeans e camiseta) tenho os mesmos 20 anos de qualquer roqueiro, e vejo que o barulho dos jovens não é por excesso de volume de sua parte. O problema é A Surdez do Mundo. É o mundo que ao ficar mais velho vai ficando mais surdo, se não dos tímpanos então do juízo (ou do interesse). O mundo não escuta e quando escuta não ouve, quando ouve não entende, quando entende não reage, quando reage é mandando todo mundo calar a boca senão leva porrada. Sendo assim, decibéis nele.

Isso talvez explique coisas como – pra dar só um exemplo, bem atual – o quebra-quebra dos “arésios” conhecidos como Black Blocs. Me perguntam se eu sou a favor da existência deles (é como me perguntar se sou a favor da existência das onças). Por mim, o mundo não teria violência. O mundo seria um lugar sem exploração econômica, sem injustiça social, sem miséria, sem corrupção e ladroagem, sem analfabetismo e desemprego. (Olhem como sou realista – não questiono o câncer, os tsunamis, as serpentes venenosas; só questiono os males que são consequência de decisões humanas.) Por mim o mundo seria uma espécie de Festival de Woodstock, e na hora de trabalhar ele se pareceria com aquelas propagandas socialistas cheias de operários felizes e camponesas sorridentes e saudáveis.

O “pobrema” é que o mundo não é assim, e alguém precisa dizer isso ao mundo. Me lembro de, muitos anos atrás, ir com milhares de pessoas abraçar a Lagoa Rodrigo de Freitas, num imenso happening riponga que parecia Céu de filme espírita. Mas sou realista e não creio que Governos, Bancos e Corporações sejam tomados de acessos de meiguice diante desses espetáculos. O que os impressiona, os inquieta e os encurrala é um dos seus instrumentos preferidos: a violência física, que eles financiam, endossam, incentivam e acobertam. Não, não posso dizer que sou a favor dos Black Blocs, mas a verdade é que sou contra tudo que eles também são contra.


quinta-feira, 17 de outubro de 2013

3319) Coisas de tradução (17.10.2013)




(by Chema Madoz)

Traduzir é um processo traiçoeiro. Não sei se vocês conhecem aqueles saites de tradução instantânea (BabelFish é o que uso mais) onde você bota uma frase, e diz de que língua para que língua ele deve traduzir. Eu já peguei uma estrofe dos Beatles e passei do inglês para o português; depois, do português para o russo; depois, do russo para o italiano; e assim por diante, em dez saltos sucessivos. O texto do fim era ininteligível. Perdia-se o sentido, o nexo entre as partes do discurso, palavras eram traduzidas para algo “parecido” num passo, e no passo seguinte para o “parecido com o parecido”, até a Entropia fazer com o texto o que a polícia carioca faz com uma manifestação pacífica.

Na recente edição da Antologia da Literatura Fantástica de Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo pela Cosac Naify, há uma nota interessante. A antologia reúne textos que originalmente eram em inglês, francês, italiano, chinês, japonês, alemão e outras línguas. Na edição argentina, foram todos, é claro, traduzidos para o espanhol. A nota da edição brasileira (que é traduzida por Josely Vianna Baptista) diz:

“A editora traduziu todos os contos da presente coletânea a partir das versões de Borges e Bioy Casares, entendendo que assim respeitaria a poética dos autores. Em 1982, quando foi publicada uma edição italiana da Antologia, Borges afirmou: ‘Não traduziram nossa antologia; procuraram as fontes e traduziram. Agiram assim em prejuízo do leitor, naturalmente. Não deveriam ter escolhido um livro de autores que se distinguem por suas transcrições e citações infiéis’ (Em A. Bioy Casares, Borges, Barcelona: Destino, 2006, p. 1562).”

Isso mostra o (como direi?) anticonvencionalismo de Borges. Para mim, o correto é o que os italianos fizeram: retraduzir os contos de suas línguas originais, não de suas versões argentinas. Borges era famoso por seu descaso para com a exatidão tradutória. Assinou (sem traduzir) uma versão em espanhol da Metamorfose de Kafka (o que só foi descoberto muito tempo depois). Sua tradução da “A carta furtada” de Poe omite parágrafos inteiros, aumentando a fluência do texto mas omitindo a exatidão maníaca do autor. Borges parece crer que as boas histórias se fazem com bons enredos, e que dez filtragens no BabelFish deixariam uma boa história ainda em condições de ser lida e apreciada. Ele disse certa vez que sucessivas gerações de homens fazem com uma frase o que as águas de um rio fazem com uma pedra: deixam-na polida, lisa, despida de tudo que é supérfluo. Ele certamente acreditava que cabia à tradução aperfeiçoar as qualidades do original e eliminar o que o tradutor considera seus defeitos.


quarta-feira, 16 de outubro de 2013

3318) O conto e o romance (16.10.2013)



(manuscrito de Lovecraft)

No recente VII Fantasticon, em São Paulo, participei de uma proveitosa troca de idéias com o escritor Marcelino Freire sobre “Cortázar e o conto sem véus”, um passeio pela obra do escritor argentino, um dos maiores contistas do continente. Marcelino lembrou uma famosa definição de Cortázar, que era um fã do boxe. Dizia ele que um romance é uma luta de boxe que se ganha por pontos, e o conto é uma luta em que se ganha por nocaute. (Ele poderia ter dito, se fosse fã do atletismo, que o romance é uma maratona e o conto é uma corrida de 100 metros rasos.)

Esse assunto me vem à mente depois que foi concedido o Prêmio Nobel de Literatura à canadense Alice Munro, que aliás nunca li, mas que fiquei sabendo ser uma especialista no conto. Isto deu margem a discussões, vindas de todos os lados, a respeito de contistas que nunca ganharam o Nobel (a começar por Borges) porque, segundo se teme, a Academia Sueca talvez considere o conto um gênero menor. (Aqui pra nós, eu acho que há uma veneração excessiva por essa Academia provinciana e pelo tal Prêmio Nobel, que é tão cheio de injustiças, equívocos e bobagens quanto qualquer prêmio de academia municipal de letras do Sertão do Borogodó.)

Acho que o preconceito em relação ao conto, que o faz perder em importância para o romance, é o mesmo que acontece com o filme de curta-metragem (considerado “uma obra menor” em relação ao longa-metragem). Tudo resulta da ética do labor, do trabalho, do capital, do consumo, uma ética perniciosa que, como sempre acontece, acaba produzindo uma estética. Acaba determinando (por valores acidentais e externos) o que é e o que não é uma obra de arte, o que tem e não tem valor artístico.

Por um lado, essa ética supõe que é preciso mais trabalho para escrever um romance de 300 páginas do que para escrever um conto de vinte (assim como se supõe que é mais trabalhoso dirigir um filme de 90 minutos do que um filme de dez ou quinze). Mais trabalho, segundo essa ótica, significa mais valor. Não se pode (pensam eles) comparar o valor de 300 páginas ao valor de vinte. (Ao que os contistas retrucam que é muito mais trabalhoso escrever um livro de contos de 300 páginas do que um romance do mesmo tamanho.)

E assim como se cria uma estética do trabalho, cria-se uma estética do consumo. O consumidor paga por um romance de 300 páginas porque vê ali o valor agregado do trabalho, o que segundo ele faz o romance “conter mais literatura” do que o conto. Essa estética quantitativa (ser longo é um valor estético em si mesmo) está espalhada por todas as artes, mas em nenhuma tem causado tantas injustiças quanto na literatura e no cinema.


terça-feira, 15 de outubro de 2013

3317) Biografia ou fofoca (15.10.2013)



Fiquei sem saber se me metia na polêmica sobre biografias não-autorizadas. De um lado, querendo manter a lei que as proíbe, estão compositores como Chico Buarque, Roberto Carlos, Caetano, Gil e Djavan. Do outro, defendendo o direito de alguém escrever uma biografia sem pedir ao biografado, estão Ruy Castro, Fernando Morais, Lira Neto e outros autores de biografias famosas. Sinto-me próximo aos dois grupos, mas é mais provável eu escrever um dia a biografia de alguém do que alguém escrever a minha.

Sou contra a proibição prévia de biografias não-autorizadas. Minha regra é: deixa publicar, e depois avalia. Temos uma tradição de excelentes biógrafos, e o gênero é levado a sério em nosso país. Biografias mal-intencionadas ou incompetentes dificilmente emplacam. E trabalhos sérios como os dos que citei acima e outros, sempre dão um bom retorno de público e crítica. Sou contra censura prévia. Se uma biografia minha me ofender, ou disser mentiras ao meu respeito, chamarei meus advogados e cairei com-água-e-lenha em cima do pirangueiro, que vai arrenegar o dia em que nasceu. (Cuidado com os caras bonzinhos feito eu. Somos vingativos.)

Tenho, contudo, um esboço de teoria para explicar o inexplicável, para entender por que cantores e compositores tão inteligentes se unem para bloquear o trabalho dos biógrafos. É que nossa música popular, ou melhor nosso “show-business” (a cada década que passa temos mais “show business” e menos música popular) convive, de maneira um tanto promíscua, não com biógrafos acadêmicos ou sérios, mas com a indústria de fofocas, difamações e calúnias que se espalha por canais de TV, revistinhas de fãs e de frivolidades em torno da mídia, colunas de mexericos mal-intencionados, blogs de fofocas plantadas por vingança ou despeito...

É da maledicência, doença endêmica do “show-business”, que eles têm medo, não dos biógrafos da academia ou da imprensa séria. Acham que se a lei for revogada logo aparecerão Fulaninho, Sicraninha ou Beltraninho prontos para destilar venenos, exageros, insinuações dúbias, e tudo o mais que infelizmente é moeda corrente nesse camelódromo da informação que ajuda a sustentar gravadoras e tevês. A mentalidade de estrelismo do “show business” faz da música e da televisão uma feira de vaidades, um bazar de invejas, um forno de ressentimentos. “Biografia”, no dicionário que vigora ali, é a chance de ajustar contas em nome de confrontos passados ou de antipatias gratuitas. O problema é que, na ânsia de se livrar dos picaretas, nossos artistas estão querendo barrar os estudiosos sérios. E tanto eles quanto os biógrafos sairão deste equívoco como perdedores.


domingo, 13 de outubro de 2013

3316) O turista idiota (13.10.2013)



Um dos tipos mais perniciosos de turista é o turista idiota, o turista que tem alguma grana mas é burro, desinformado, tem mentalidade tacanha. 

O saite Blogdramedy (uma contração de “blog + drama + comedy”?) transcreve uma porção de reclamações feitas por turistas que compraram pacotes da Thomas Cook Vacations (da Inglaterra) para viajar por diferentes lugares do mundo mas sentiram-se enganados ou prejudicados de alguma forma. A gente não sabe se gargalha pelo ridículo alheio ou se chora com pena da humanidade.

“É muita preguiça dos lojistas de Puerto Vallarta fecharem à tarde. Precisei às vezes comprar coisas durante a hora de ‘siesta’, que devia ser proibida”. Bem, o imperialismo nasceu dessa necessidade de invadir os outros países para forçar aquelas pessoas a se comportar de acordo com os costumes da Inglaterra, e não com os deles. 

Outra madame reclama: “No meu passeio em Goa, na Índia, desagradou-me ver que quase todos os restaurantes serviam curry. Não gosto de comida apimentada”. Pois é, não custava nada ter permanecido em Manchester tomando chá com biscoitos. 

Outro cliente é mais radical e protesta: “Fomos passar as férias na Espanha e tivemos problemas com os taxistas, que eram todos espanhóis”. Outro, mais radical ainda: “Havia muitos espanhóis por lá. Os recepcionistas falavam espanhol, a comida era espanhola. Ninguém nos avisou que haveria tantos estrangeiros”.

“A praia era muito cheia de areia e tínhamos que limpar tudo ao voltar para o hotel”, queixa-se um que nunca viu praia na vida. Outro protesta: “A areia não era como a que aparece nas fotos do panfleto. A das fotos é branca mas a de lá era mais amarelada.” Difícil atender um consumidor tão exigente. 

Outra madame observa: “Não deviam permitir às moças fazer topless na praia. Isso ficava distraindo meu marido, quando tudo que ele queria era relaxar”. Valei-me, Santa Inocência. “Fui mordido por um mosquito,” queixa-se outro, “e o panfleto não avisou que haveria mosquitos”.

Não devo ser muito severo com essas pessoas, porque eu não seria severo com os matutos de Cabrobó se reclamassem do que os incomodou num hotel 5 estrelas de Paris. Gente ignorante e bronca existe em todo canto. E nas nações e regiões mais ricas existem pessoas broncas e ignorantes que conseguiram a duras penas (são burras) amealhar uns cobres para fazer turismo por um mundo que não conhecem, que nunca tiveram tempo de estudar, um mundo que as incomoda por ser diferente do seu, e que, no raciocínio defensivo delas, precisa ser modificado para se adaptar aos seus gostos, porque afinal “elas estão pagando caro pela viagem de férias”.




sábado, 12 de outubro de 2013

3315) Antologias fantásticas (12.10.2013)





Saiu finalmente no Brasil a primeira tradução integral de um clássico da literatura imaginativa: a Antologia da Literatura Fantástica (Cosac Naify, 2013), organizada a seis mãos por Jorge Luís Borges, Adolfo Bioy Casares e Silvina Ocampo. Esta antologia teve um certo impacto na literatura argentina quando saiu em 1940, e um impacto muito maior com a sua segunda edição aumentada em 1965, quando Borges já havia ganho em 1961 o Prêmio Formentor, que o deixou famoso no mundo inteiro. A história tortuosa dessas edições (e da edição em inglês, The Book of Fantasy, com repertório de contos substancialmente diverso) é contada aqui num posfácio de Walter Carlos Costa. Outro posfácio desta edição da Cosac Naify é assinado por Ursula LeGuin – é o texto incluído na edição em inglês, onde a autora de Os Despossuídos faz especulações sobre os diferentes usos do termo “fantasia”. 

Esta edição é uma beleza de livro, com uma capa multicor e chamativa (onde o título e os nomes dos autores, infelizmente, ficam quase invisíveis) e um belo projeto gráfico que ajuda a leitura. São 75 textos, onde fica bem claro que os organizadores não estavam nem aí para os critérios convencionais de antologias de contos. Eles incluem trechos de romances (alguns com apenas 3 ou 4 linhas), fábulas tradicionais, diálogos teatrais (“Um lar sólido” de Elena Garro, “Uma noite na taberna” de Lord Dunsany, “Onde a cruz está marcada” de Eugene O’Neill); colocam mais de um texto de um mesmo autor; incluem textos deles próprios. É claramente um trabalho feito por prazer, sem muita preocupação com as opiniões alheias. Por isso, tornou-se um livro único, inimitável. No prefácio, Adolfo Bioy Casares faz um esboço de classificação de temas e teoriza um pouco sobre o gênero, que ele próprio praticou com bons resultados.

Há muitos contos clássicos aqui, aqueles que todo fã do fantástico já leu e talvez já tenha: obras de Maupassant, Kafka, Wells, Edgar Allan Poe. Mas há surpresas mais sutis, que nem todo mundo conhece: “Enoch Soames” de Max Beerbohm, “Ponto morto” de Barry Perowne, “O conto mais belo do mundo” de Kipling, “Sredni Vashtar” de Saki... Três deles eu havia incluído no meu Contos Fantásticos no Labirinto de Borges (Casa da Palavra, 2005): “Onde seu fogo nunca se apaga” de May  Sinclair, “O bruxo preterido” de Dom Juan Manuel e “Os cativos de Longjumeau” de Léon Bloy. E há pelo menos uns vinte que não li ainda, o que me garante algumas horas de viagem pelo fantástico, conduzido pelas mãos de quem já leu mais do que eu, em idiomas que não alcanço. O preço do livro é pesado (69 reais) mas por mim vale cada centavo.



sexta-feira, 11 de outubro de 2013

3314) Ser escritor (11.10.2013)




Ser escritor é viver duas vidas pela metade, a do mundo de fora e a do mundo de dentro. Ser escritor é cultivar cacoetes, pequenos rituais que adiam a hora terrível de começar a escrever. Ser escritor é ficar das 11 da noite às 2 da manhã escrevendo o melhor conto de sua vida, perder o arquivo sem ter salvo, desesperar-se, sentar de novo, refazer tudo até as 5, e perceber que ficou melhor do que antes. Ser escritor é abrir cada revista ou suplemento literário e passar os olhos de revoada pelas matérias em busca do próprio nome. Ser escritor não é padecer no paraíso, é divertir-se no inferno. Ser escritor é transformar água em vinho.

Ser escritor é ler parando o tempo todo para se perguntar: “Por que achei esta frase boa? Por que achei esta outra frase ruim?”. Ser escritor é anotar dez mil idéias sabendo que somente uma dúzia delas se transformará em texto, mas anotar mesmo assim. Ser escritor é ver a própria alma se alternando entre gargalos e inundações. Ser escritor é escrever uma frase crucial, mas saber que uma palavra ali pode ser substituída por outra melhor, e até achar pode levar meses. Ser escritor é ir para uma Feira do Livro levando 30 exemplares de livros seus e trocar por 30 livros de colegas para trazer na volta.

Ser escritor é ter que ao mesmo tempo conservar o passado e conversar com o futuro. Ser escritor é ver suas melhores frases lhe ocorrerem quando está no chuveiro, ou em pé no metrô, ou no meio de uma sessão no cinema, onde quer que seja impossível anotá-las. Ser escritor é ter que pagar o aluguel com a venda de manifestos dirigidos à posteridade. Ser escritor é passar três dias sem conseguir escrever porque chegou na cena em que um personagem vai ter que morrer para sempre. Ser escritor é passar o dia respondendo “sim... tudo bem... claro que pode... por mim está OK...” às coisas que a família inteira lhe diz.

Ser escritor é, ao faltarem dois meses para sua noite de autógrafos, começar a frequentar as noites de autógrafos dos amigos. Ser escritor é ser ao mesmo tempo arquiteto, músico, jornalista, padre confessor, voyeur, exibicionista, alquimista e publicitário. Ser escritor é ler livros alheios premiados e ficar encontrando erros que jamais teria cometido. Ser escritor é vasculhar a própria mente em busca de idéias como um mendigo vasculha uma lata de lixo em busca de uma coxinha em boas condições. Ser escritor é inventar paredes onde havia a treva, inventar uma porta onde havia uma parede, uma fechadura onde havia uma porta, uma chave para abrir a fechadura, e ficar sentado, perguntando a cada pessoa que cruza o umbral: “É bonito lá fora?”.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

3313) 19 medos (10.10.2013)





Antonio Lédio Martins, 39 anos, Salvador: medo de ter os tornozelos amarrados a um cavalo que em seguida será chicoteado, para que o arraste pelo solo pedregoso do sertão. 

Olaf Sigursson, 61 anos, Estocolmo: medo de que no encanamento de sua casa haja insetos mortos, incrustados no interior do cano, que liberam micróbios fatais. 

Amanda Stross, 40 anos, Perth: medo de que o chão afunde sob seu peso (ela pesa apenas 53kg), em qualquer circunstância: em casa, no escritório, na calçada, na praia.

Paulo Marcílio Guimarães, 23 anos, São Paulo: medo de perder o aviso de embarque no voo por estar com earphones escutando Metallica. 

Carmen Gomez de la Murta, 7 anos, Salamanca: medo de que os pais tenham colocado microcâmeras no banheiro para depois postar fotos dela na Web. 

Zhin Wan Yung, 56 anos, Beijing: medo de descer do trem para ir ao banheiro e o trem partir sem ele. 

Roberto Lísio Gonçalves, 23 anos, Fortaleza: medo de debruçar na amurada de uma cobertura e a amurada ceder ao peso de seu corpo.

Fernanda Câmara, 21 anos, São Paulo: medo de ficar bêbada e sair dando para todo mundo da festa. 

Raymond Ambreville, 39 anos, Bruxelas: medo de que um inseto entre pelo seu ouvido, rompa o tímpano e fique passeando dentro do seu crânio. 

Lucy Harrigan, 47 anos, Hong Kong: medo de beber uma lata de refrigerante e no final perceber algo sólido lá dentro. 

Alcino Guimarães Tortuga, 48 anos, Santarém: medo de estar mexendo nas gavetas da esposa e encontrar algo que irá estragar sua vida para sempre.

Bernardo Cardoso Almeida, 18 anos, Londrina: medo de perder a carteira, juntamente com o restante do dinheiro que costuma distribuir pelos outros bolsos. 

Raquel Ondina de Andrade, 30 anos, Aracaju: medo de ser eletrocutada no chuveiro quando toma banho sozinha. 

Almeyr Hongallon, 41 anos, Istambul: medo de ser atingido na calçada por um martelo que pode escapulir casualmente da mão do operário vinte andares acima. 

Merlânia Cordeiro Cardoso, 11 anos, Bayeux: medo que os povo comece a tomar craque e que o mundo se acabe numa invasão de zumbi.

Harrison Luna dos Sabros, 33 anos, Belém: medo de que alguém se suicide pulando de um prédio e caia em cima dele. 

Jerôme Farfan, 55 anos, Le Havre: medo de descobrir entre seus antepassados um carrasco, um traidor da pátria, um violador de donzelas. 

Louis Dickson, 51 anos, Seattle: medo de que tudo que escreve no computador esteja sendo copiado por um programa espião e isto leve sua firma à ruína. 

Joacildo Cardoso de Melo, 44 anos, Natal: medo de reconhecer num assaltante um ex-colega da escola pública, tentar usar isso em seu favor e ver que só fez piorar as coisas.









quarta-feira, 9 de outubro de 2013

3312) O Mágico e o Fantástico (9.10.2013)




(by Alexander Johansson)


Existem dois termos que a imprensa literária usa de modo intercambiável: “Realismo Mágico” e “Realismo Fantástico”. 

Eu acho que os dois exprimem coisas muito diferentes, acho que são usados de maneira irrefletida e confusa, e para aclarar essa confusão proponho a classificação abaixo.

O “Realismo Mágico” é aquele tipo de narrativa literária em que uma história aparentemente realista na sua descrição de ambientes e de personagens inclui também elementos impossíveis de acontecer, mas que obedecem a uma lógica emocional da própria narrativa. 

Exemplos clássicos são Cem anos de solidão (1967) de Garcia Márquez ou Midnight’s Children (1980) de Salman Rushdie. 

É um tipo de história característico de culturas em que um verniz europeu (cientificista, cartesiano) se sobrepõe a uma medula indígena ou milenar (dominada pelo pensamento mágico), o que dá origem a essas infiltrações. Predomina na América Latina mas também tem versões próprias nas literaturas orientais: Índia, China, Japão. O romance e o conto (ou seja, as prosas de ficção) são o seu território principal.

O “Realismo Fantástico” é algo próprio da prosa de não-ficção: o ensaio (ou pseudo-ensaio), a reportagem especulativa, o jornalismo investigativo voltado para assuntos misteriosos e controvertidos. 

Os melhores exemplos de realismo fantástico são os livros O Despertar dos Mágicos (1960) de Pauwels & Bergier (que usa esse termo em seu subtítulo) e Eram os Deuses Astronautas? (1968) de Erich von Daniken, que têm como precursor ilustre O Livro dos Danados (1919) de Charles Fort e a série Believe it or Not (1919) criada por Robert L. Ripley. 

Neste caso, não se trata de romances de ficção, e sim de explorações semi-jornalísticas de fatos inexplicados, curiosos, insólitos, absurdos. Para essas obras, o termo “mágico” não se aplica muito, porque ele não exprime a presença de uma visão mágica do mundo, e sim a mera existência de fenômenos extraordinários que o nosso “realismo” ainda não aceita: extraterrestres, criaturas fantásticas, conspirações, pseudo-ciência, etc.

A principal distinção entre os dois, contudo, é o fato de que o primeiro é composto de literatura de ficção, e o segundo de textos de não-ficção. 

O Realismo Mágico conta histórias assumidamente inventadas pelo seu autor, as quais, como toda obra literária, oferecem uma visão pessoal e profunda da condição humana. 

O Realismo Fantástico apresenta discussões factuais sobre assuntos controversos, geralmente propondo uma versão um tanto fantasiosa dos fatos, o que bastaria para classificá-lo como uma espécie de “jornalismo imaginativo” ou de “ensaística da imaginação”.








terça-feira, 8 de outubro de 2013

3311) O céu e o inferno (8.10.2013)



("Inferno", by merl1ncz)

Depois de uma vida inteira mergulhada no crime, no vício e nas drogas, Nicodemos foi fuzilado num beco durante uma emboscada policial, morreu e foi parar no inferno. Durante a vida inteira tinha zombado do bem e do mal, da virtude e do pecado. Achava que era igual a um bicho, uma criatura que após a morte simplesmente deixa de existir.

Assustou-se ao ver que o Inferno existia, sim. Um labirinto infinito, vastas cavernas vulcânicas, interligadas por passagens estreitas, onde pessoas em carne e osso eram mergulhadas em poças de lava, gêiseres de água fervente, ou braseiros perpétuos.  A carne dos corpos era destruída e recomposta sem parar. A dor era tão intensa que se tornava algo uniforme, onipresente. Quando diminuía, era possível aos condenados perceber que umas partes do corpo doíam mais e outras menos. Essa diferença trazia um requinte de sofrimento a mais: havia sempre um ponto onde a dor podia aumentar de novo.

No trajeto entre um castigo e outro os condenados eram chicoteados e arrastados ao longo de um chão coberto de navalhas.  O mais suportável dos tormentos era o Fundo do Poço, um buraco cheio de excrementos e de criaturas repugnantes, onde era preciso comer e beber, ao mesmo tempo em que coisas como enormes moluscos devoravam os condenados e depois os regurgitavam de volta.

Depois do que lhe pareceu uma eternidade de peregrinação de suplício em suplício, Nicodemos foi arrastado pelos tornozelos ao longo de alguns quilômetros numa rampa ascendente. No fim do trajeto os demônios o puseram de pé, enquanto destrancavam aos poucos um cofre de metal escuro, com inscrições em letras estranhas, do tamanho de uma cabine de elevador.

“E agora, vai ser o quê?” – balbuciou Nicodemos, por entre os lábios partidos e os dentes arrancados. “Para cada ano passado no Inferno, tens direito a um minuto no Paraíso,” informou um dos demônios, que era uma espécie de lagarto sem cauda com dois metros de altura. “Tenho direito ao Paraíso?”, espantou-se Nicodemos. O monstro explicou, enquanto manipulava engrenagens e alavancas: “Sem isto, qualquer alma morre. Este minuto a revigora, e a devolve como nova, para que voltemos a trabalhar com ela.  Essa trégua permite que tenhamos vocês a nossa disposição por toda a eternidade.”

Nicodemos entrou no cofre de ferro, a porta se fechou. Passou-se um minuto e ela voltou a se abrir para que ele saísse.  Não se sabe o que viu ou sentiu, porque o Inferno pode ser reconstituído por palavras humanas, mas o Paraíso não. Nicodemos retornou ao braseiro para mais um ano de tormentos, e estava estranhamente consolado, porque aquele minuto tinha valido a pena.