quarta-feira, 25 de setembro de 2013

3300) Narrativa e games (25.9.2013)






Às vezes, num videogame, exige-se do herói uma série de aventuras, como ocorre com os “doze trabalhos de Hércules”. Tais aventuras não têm necessariamente que se dar nesta ou naquela ordem, a menos que nos convenha. São pedaços de história separados do restante do fluxo de tempo. Se é de Hércules que estamos falando, pode ser que quando o herói limpa as estrebarias do Rei Augias ainda não tenha cortado as cabeças da Hidra de Lerna, ou pode ser que sim. No jogo, como no mito, esses episódios têm autonomia – como um quadro que, dentro de um museu, conta somente sua própria história. Eles pertencem à história principal (das servidões impostas a Hércules) mas cada um deles conta sua história única e irredutível às outras. Isso pode contar a favor de quem escreve uma variante qualquer desse mito.

Na maioria dos jogos é possível estabelecer parâmetros, numa escala de mais e menos, para aspectos como “ação”, “violência”, “enigma”, “habilidade”, etc.  As principais recompensas de um videogame são de ordem emocional, embora as emoções sejam manipuladas o tempo inteiro, e intelectuais. Um game não nos satisfaz fisicamente, porque envolve menos do nosso corpo. Uma atividade física real, que exige todos os nossos recursos, produz uma adrenalina maior do que a do game mais alucinado. Mas as recompensas maiores do game são intelectuais, porque quando resolvemos um enigma isso é uma vitória completa e verdadeira do intelecto, mas quando derrubamos a socos meia dúzia de leões-de-chácara isso não significa nada em termos de nossa invulnerabilidade bélica. É uma vitória ilusória. Nada aconteceu ao nosso corpo, nada dependeu dele. No caso da vitória do intelecto, ele fez o que se esperava que fizesse. Os videogames, pelo menos por enquanto, dirigem-se ao nosso cérebro antediluviano ou reptiliano, em primeiro lugar, através de sua mecânica da atividade física insetóide, incessante. E depois à nossa mente estrategista, capaz de encontrar soluções, de perceber padrões de recorrência nos fenômenos e aproveitar-se disto.

Tudo que se refere ao corpo num videogame (natação, esgrima, dança, artes marciais, pilotagem, parcours, etc.) é ilusão, é mera transferência pseudo-sensorial, comercialmente acessível a qualquer um. É possível viver ali experiências (escalar o Everest, descer em corredeiras, boxear com cangurus) que seria imprudente tentar na vida real. Mas quando é necessário perceber uma pista através de um anagrama ou de uma citação disfarçada, esse pequeno triunfo intelectual de quem decifra corretamente é o mesmo que ocorreria num livro ou num filme. Um videogame não enche a cisterna do corpo, mas enche o dedal da mente.


Um comentário:

Flávio disse...

Já fui viciado em games,mas enjoei.Eu "tenho fases,como a lua"como naquele poema de Cecília.Você conhece Braulio?o Fagner deve conhecer...ai, ai,como eu sou um fã promíscuo.