quarta-feira, 17 de abril de 2013

3162) Livros clandestinos (17.4.2013)




Meu nome é Sonntag, e sou bombeiro. Meu pai o foi também, e queimou muitos livros. Quando começou a salvá-los às escondidas, foi descoberto e morto pelas forças de segurança. 

Cresci ouvindo este exemplo ameaçador. Tornei-me bombeiro para conhecer essas obras proibidas, mesmo correndo o risco de ser executado. Enganava-me. Hoje em dia o Sistema balança, racha-se em fendas; a corrupção impera. Encontram-se livros à venda nos mercados negros de armas, de próteses, de venenos. 

Minhas leituras fervorosas e às escondidas são alimentadas por essa rede escusa de delinquentes, que fervilha nas favelas, nas ruínas ocupadas, nos casebres de beira-rio. Não se consegue saber de onde extraem esses tesouros.

Há boatos sobre bibliotecas soterradas, mas a verdade é que livros já não são impressos há mais de dois séculos. O papel é descartável, perecível. Cada exemplar merece ser preservado, porque tudo que está impresso é precioso. O que foi confiado ao papel constitui o esqueleto, a estrutura da existência humana; os pixels coloridos da TV são mera distração ou adorno. 

Daí que cada folha impressa valha uma pequena fortuna: trechos de romances dos quais não sabemos título nem autoria, mas que por isso mesmo tornam-se mais cheios de mistério e de valor. Não direi que entendo tudo que leio, mas nesses momentos sinto-me compartilhando um ritual místico de transcendência, ainda que numa língua que me é desconhecida.

Muito ouvi falar em Shakespeare; para mim, são onze páginas arrancadas não sei de onde e costuradas umas às outras, pelas quais paguei uma pequena fortuna, no meu tempo de estudante. 

Tornei-me bombeiro e aumentei meu capital. Em menos de dois meses na corporação reuni exemplares completos de obras como “Meu Nome é uma Bala”, “Férias de Amor”, “Apólogos Edificantes”, “As Libertinas”, “Anais da Câmara de Vereadores”. Tornei-me capitão, e entrei para um grupo de jovens oficiais progressistas que lutam discretamente pelo fim do banimento.

Visados pelo Governo, temos que dobrar nossas precauções para que não encontrem nossos tesouros. Compro tudo que me aparece pela frente. Somente nesta semana um traficante vendeu-me vinte páginas de um livro do célebre Nabokov, a história marítima da caça a uma baleia; outro, um conto de Baudelaire intitulado “O poço e o pêndulo”; de um terceiro adquiri sonetos de Homero. 

Nomes que evocam memórias de um tempo mítico em que a cultura era acessível a todos. Tesouros que guardo num cofre por trás de uma parede secreta, feliz em saber que por mais que as ditaduras massacrem a cultura e o saber não há como destruir as grandes obras do pensamento humano.





6 comentários:

leiturasdahistoria disse...

Esse texto diz muito da nossa sociedade, lemos muito, mas não lemos nada. A nossa experiência com a arte se perde, como afirmou o filósofo alemão Frank Sinatra. Michel Teló escreveu as peças Hamlet, Macbeth; Gabriel Garcia Marquez, escritor de livros sobre auto-ajuda; Clarice Lispector, escreve aforismo cristãos. Consumimos arte como nunca, mas com a mesma intensidade deles queimando a fahrenheit 451, por sinal, um ótimo livro do Pedro Bial.

balaio do pedrão disse...

O primeiro livro que publiquei em algum lugar falava sobre algo relacionado: http://balaiodopedrao.blogspot.com.br/2008/08/seca-ento-ficou-determinado-por-lei.html

Anônimo disse...

A melhor forma de alienação é justamente esta chamar de governo, ou obra do estado, ou sempre foi assim, em vez de nomear a ação de um grupo ou uma pessoa. Pois, é mais fácil lutar contra o Joaquim, aquele que deu um golpe de estado, o Joaquim cujo pai foi Eike( o vigarista), do que lutar contra o Grande Irmão, aquele que tudo vê.
Não são as obras de arte queimadas e esquecidas que perdem com isso, as obras que mostram que Joaquim não é Deus, não é o Governo, e sim um ditador barato, que na história da humanidade tivemos melhores e mais perversos
Quem perde com isso? Nós que teremos medo de Joaquim, o Grande, pois a obra de arte não tem vida, apesar de jurar ter visto, lendo cem anos de solidão: após o tiro, o sangue de José Acárdio Buendia escorrendo pelo livro, passando pela porta de minha casa, as escadas de meu prédio e inundado a rua.

Eduardo Macedo disse...

O pior é que esta ficção não poderia se passar num Brasil do futuro, pois os leitores são tão poucos que jamais ameaçariam uma ditadura estabelecida. Mais fácil seria queimar os poucos que leem que os livros que mofam e servem de enfeite.

Anônimo disse...

CHIQUE O FINAL : A CULTURA SE DEGRADOU TANTO QUE OS AUTORES E OBRAS ESTÃO TODOS DETURPADOS. ESTA BARBÁRIE AINDA VAI CHEGAR, PODE SER AGORA (OLHA O ASSANHAMENTO DA COREIA DO NORTE)OU DAQUI A UM SÉCULO,MAS A HECATOMBE VAI CHEGAR.

Paulo Rafael disse...

Gostei muito BT, foi bom colocar o link no facebook, segui e descobri.