sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

3092) "Miguel e os demônios" (25.1.2013)







Lourenço Mutarelli é mais um autor migrando das histórias em quadrinhos para a literatura. Traz consigo um enxugamento de estilo e alguns recursos típicos de quem escreve para a imagem. Miguel e os Demônios (2009) é um romance curto na linha áspera e sombria de Rubem Fonseca, João Antonio, Dalton Trevisan. Cito cada um destes nomes por motivos diferentes. De Fonseca ele tem o acompanhamento do cotidiano de um polícia civil, a percepção instintiva de detalhe bizarros do dia-a-dia. De João Antonio, uma certa ambientação sórdida nos desvãos do centro de São Paulo, por entre pivetes e travestis. De Trevisan, a secura e a precisão das frases e dos parágrafos, sempre muito curtos, desbastados ao máximo.

Mutarelli parece estar escrevendo para si mesmo, com a descontração de quem escreve para quadrinhos e nem tenta disfarçar essa origem. Aqui e acolá ele dá indicações como: “Durante a corrida o celular de Miguel não para de tocar. No visor lemos Rebeca”. Essas dicas de visualização são típicas de roteiro (HQ ou cinema), e num texto mais floreadamente literário pareceriam deslocadas. Mas em Mutarelli elas se encaixam bem com a economia das frases curtas, que às vezes trazem uma ação longa e complexa comprimida em menos de uma linha. Tudo é rápido, direto, e a habilidade de Mutarelli está em misturar o tempo inteiro, nessas rajadas de parágrafos magrinhos e frases curtas, indicações objetivas (o que poderia ser visto por um observador presente à cena) e subjetivas (o que o personagem está sentindo ou pensando, uma área a que só o autor tem acesso).

Miguel é um policial separado da esposa, e tem uma namorada manicure com duas filhas problemáticas e um ex-marido perturbado. Participa de chacinas de menores sentindo-se pouco à vontade. O pai é aposentado e doente, Miguel está voltando a fumar... É uma situação meio Stephen King, e King teria sem dúvida produzido com esses elementos um romance de 600 páginas. Miguel sente-se o tempo todo como uma caldeira a ponto de explodir, e sabe que a explosão não vai poupar nenhum deles.  É um romance de sexo, prostituição, traição e culpa, acompanhando o cotidiano insuportável de meia dúzia de pessoas e as explosões cegas de uma violência alimentada por superstições. Quando os personagens cometem atos que eles mesmos desprezam, o satanismo surge como uma explicação para tudo.  Uma espécie de Teoria da Conspiração individualizada. O personagem tem a compulsão de “pecar”, quer pecar, mas não pode admiti-lo, então precisa criar uma teoria a respeito de demônios que habitam dentro dele e que o obrigam a fazer aquilo de que ele gosta tanto.



2 comentários:

Kadu Mauad disse...

A tal conspiração satânica justifica o "distúrbio" mental de alguns psicopatas que não veem uma razão plausível para fazerem o que fazem. Para se safarem acabam dizendo isso. Estava possuído por uma força do Mal que me mandava fazer. Agora eu sei e com a revelação Jesus, nosso Senhor me guarda e proteje. E chora. Incapaz de se colocar no lugar do outro ele chora para se proteger de eventuais acusações de que ele é insensível e não se arrepende. Mas ele não conta que sua debilidade no sistema límbico, parte responsável pela memória emotiva do cérebro primitivo, não o permite ocultar seu frio arrependimento.

Posso eu também estar sendo levado a pensar assim, claro. E não ver emoção em sujeitos capazes de cometer uma "chacina" seja lá porque razão ou por que falta de emoção.

Kadu Mauad disse...

A propósito: neste artigo é citado outra obra do Mutarelli.

http://mundofantasmo.blogspot.com.br/2012/01/2777-o-cheiro-da-grana-2712012.html

obrigado, BT, pela iluminação!