domingo, 30 de dezembro de 2012

3070) A FC de Pasárgada (30.12.2012)






Uma utopia é um lugar onde tudo acontece do jeito que a gente gostaria que acontecesse.  A utopia dos vegetarianos fecha os açougues, a dos dorminhocos multiplica os feriados. O Paraíso de algumas religiões, por exemplo, é uma variante da utopia. Não sei o que se passava na cabeça dos teólogos medievais que garantiam a existência, no céu cristão, de onze mil virgens. Para quê mesmo?... Atos falhos da psique, de que nem os eremitas do mosteiro estão a salvo.

A utopia de Manuel Bandeira tinha nome: “Vou-me embora pra Pasárgada...”. Bandeira quer ir para esse país imaginário (na antiga Pérsia, ao que parece) onde, ele garante, é “amigo do rei”. (É jeitinho brasileiro dando-se bem em qualquer lugar: “Eu sou ‘assim’ com os home”).  A ironia infantil do poeta denuncia logo de cara esse reinado impossível onde tudo é somente o desejo, desejo atendido no erguer de um dedo.

Os críticos destacam, nesse poema, a nostalgia do rapazinho tímido, fraco, assolado pela tuberculose. Ele anuncia a transformação miraculosa que sofrerá: “E como farei ginástica / andarei de bicicleta / montarei em burro brabo / subirei em pau de sebo / tomarei banhos de mar!”.  Tudo que lhe era proibido na vida real será possível nesse mundo.

Mas aí Bandeira nos vem com um trecho não muito distante da ficção científica futurista: “Em Pasárgada tem tudo / é outra civilização / tem um processo seguro / de impedir a concepção / tem telefone automático / tem alcalóide à vontade / tem prostitutas bonitas / para a gente namorar”. Parece com aquelas utopias urbanas meio dark de Robert Silverberg ou de Samuel R. Delany. Uma cidade cheia de gadgets para nos facilitar a vida, e só faltou dizer que as “prostitutas bonitas” são andróides, como as replicantes de Blade Runner ou as esposas-troféu de The Stepford Wives.

Utopias mecanizadas, como os eletrodomésticos inteligentes de The Jetsons. Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas, dizia: “Pois os próprios antigos não sabiam que um dia virá, quando a gente pode permanecer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roça, e as foices, para colherem por si, e o carro indo por sua lei buscar a colheita, e tudo, o que não é o homem, é sua, dele, obediência?”.  

O mundo automático é um sonho antigo, sonho de lavradores rudes: uma utopia onde os objetos trabalham sem nossa intervenção, como a bolsa que se enche inesgotavelmente de moedas nos contos de fadas, ou a toalha que ao ser estendida põe a mesa completa, no cordel. Essa utopia rural resultou no mundo urbano, moderno, high-tech.  Como todo sonho utópico que acaba se realizando, “deu no que deu”.