quarta-feira, 14 de novembro de 2012

3030) O verso indelével (14.11.2012)





A religião diz que a alma é uma essência capaz de se anexar a um corpo material e manifestar-se através dele. Isto pode não ser verdade no campo metafísico, mas é mais ou menos o que acontece no campo literário, em níveis sucessivos de complexidade. Veja-se por exemplo o caso de uma obra literária. Ela consiste em um texto, que é a alma, e que pode se traduzir nos “corpos” mais diferentes: um livrinho de bolso, uma edição de luxo, um arquivo PDF guardado num pendraive, um arquivo “.doc” gravado num CD, um folheto de cordel, um disco de vinil com o texto lido em voz alta.  Cada uma destas instâncias físicas é radicalmente diferente das outras, mas todas são capazes de reproduzir, por meios distintos, o objeto linguístico a que chamamos de texto literário (e que pode ser um poema, um conto, um romance, etc.).

Isso não se deve à arte literária em si, e si a algo muito mais básico, a própria estrutura da linguagem. A linguagem consiste em alma e corpo, ou seja, espírito e matéria, ou seja, idéia e palavra.  Nós usamos a palavra “livro”, os ingleses “book”, os franceses “livre”, e assim por diante; e todos esses conjuntos de fonemas falados ou de sinais escritos remetem à mesma idéia abstrata. É incrível que esses sinais consigam evocar em cada pessoa uma idéia equivalente. Acho que só ocorre porque há poucas coisas que a gente pratique tanto quanto a linguagem. Mas... todos concordamos sobre o significado de livro, mesa, garfo, TV, parede; mas quando começamos a discutir palavras mais abstratas (democracia, liberdade, amor, etc.) é que vemos o quanto esses termos são meras convenções, e como às vezes usamos a mesma palavra mas estamos pensando em coisas muito diferentes.

Dias atrás escrevi aqui sobre a permanência da enunciação poética num verso escrito por Drummond, por exemplo. Dias depois, no tablóide literário curitibano Cândido, vi um poema de Alexei Bueno também dedicado ao poeta de Boitempo, onde ele diz: “Mas não, quanta mentira... O que houve um dia / nada o pode anular, nada esvazia / a fôrma do poema, quando o poeta / deixa-a, médium de si, clara e repleta”. 

É a descrição exata do fenômeno linguístico, e do poético, por extensão. O verso escrito é “médium de si” no sentido kardecista do termo. Ele recebe uma alma, e a alma que recebe é a dele mesmo. Enquanto não são lidos, aqueles sinais de tinta na página são um verso morto, sem sentido. O sentido só acontece quando ele é lido. O texto escrito é médium de si mesmo, é mídia de si mesmo, é código de si mesmo, sempre pronto para mais uma reiteração do pequeno milagre eletroquímico que se dá no cérebro quando a gente lê um verso.