sexta-feira, 12 de outubro de 2012

3001) Em tradução livre (12.10.2012)




Ridicularizar erros de tradutores é um passatempo informal dos resenhadores de livros. Como me incluo em ambas as categorias, posso proclamar minha neutralidade. Ou, melhor ainda, meu completo envolvimento com os dois lados desse cabo-de-guerra. 

Traduzir não é uma ciência exata, e nem chega a ser uma ciência – é uma arte a mais na periferia da literatura. (Só nos resta lutar por um mundo onde a resenha de livros seja feita como arte também.)

Muitas pessoas de fora do mundo literário têm uma visão engenheira do que seja traduzir. Para elas, há uma correspondência ponto-a-ponto entre quaisquer duas línguas, de modo que basta ir ao dicionário e copiar o ponto que corresponde a cada palavra ou expressão do texto original. 

Na verdade, o que temos é uma nuvem turbilhonante de significados instáveis, em inglês ou russo, e a tarefa de produzir uma nuvem de dinâmica parecida, em português. O significado é uma resposta evocada na memória verbal de cada indivíduo por uma palavra ou expressão. 

Ninguém tem dois repertórios iguais, e um dos milagres da Civilização, mais do que a eletricidade ou o cimento armado, é o fato de que sejamos capazes de nos entender quando falamos. Isso se deve talvez ao fato de que dois terços de nossas comunicações verbais são uma imensa reiteração do óbvio, do visível e do já sabido.

Em seu blog Todo Prosa, Sérgio Rodrigues anuncia o Prêmio Nobel concedido ao chinês Mo Yan, cita seu livro Life and death are wearing me out e diz: “Algo como ‘A vida e a morte estão acabando comigo’”. 

Esse ‘algo como’ é a típica linguagem defensiva (equivalente a dizer “Em tradução livre: ...”) com que a gente se protege quando os engenheiros da língua, de Webster em punho, questionam a expressão usada. Que aliás me parece correta, e eu não traduziria por outra – embora alguém pudesse preferir, sei lá, “estão me matando aos poucos”, ou, paraibanamente, “estão me deixando numa peínha de nada”.

Tradução livre é o álibi que invocamos quando, escrevendo às pressas, jogamos no papel nosso primeiro impulso verbal de reconstituição em português do que acabamos de ler, sem ligar para os regulamentos. 

Toda tradução deveria ser livre. Ser livre não garante que seja a tradução correta, nem que seja a melhor tradução; mas não ser livre também não garante coisíssima nenhuma. 

Quando o tradutor joga a toalha e diz: “É algo como...”, seu único e fugaz consolo é pensar que o autor original, seja Mo Yan ou Marcel Proust, tinha algo turbilhonando em seu cérebro, e, depois de muita luta em busca das palavras mais evocativas, da melhor cadência, da melhor arquitetura sintática, resignou-se também a dizer: “É algo como...”.