quinta-feira, 21 de junho de 2012

2902) O Manifesto Krashnavik (21.6.2012)




“Este manifesto é escrito em nome de Istvar Morisev, tecelão de ofício, aldeão de nascimento, alfabetizado aos 71 anos, famoso por seu livro de memórias aos 75, rico aos 80, morto e reconciliado com o mundo aos 90. 
Em nome da luz do verde das encostas de Krashnavik na derradeira tarde do seu tempo de paz, quando um regimento inteiro de ‘kalliks’ em retirada devastou o vale, ateando fogo às cabanas depois de saqueá-las e martirizar seus moradores. 
Em nome da bacia de porcelana em que uma criança era banhada quando foi atropelada por um corcel de guerra pesando trezentas libras e coberto de armadura em couro, bacia que escapou milagrosamente intacta a esse perigo, tendo a criança, por outro lado, não resistido. 
Em nome do oficial que deteve o sabre que se erguia sobre o pescoço curvado daquele homem de bigode negro que tinha sido dado como morto por entre as ruínas fumegantes de sua casa, e mandou acorrentá-lo.
Em nome dos vizinhos de Morisev a quem coube sepultar sua família e guardar como relíquia a bacia de porcelana que pertencera aos seus avós. 
Em nome das marretas de ferro com que ele foi obrigado a quebrar pedras durante anos, longe do vale de Krashnavik, crendo que cada dia seria o seu último.
Em nome da chuva que o refrescou, do sol que o aqueceu, da comida insípida que o manteve vivo, das mulheres que nunca teve, do sono que o trazia de volta à existência, das trinta e oito voltas que o mundo deu em torno do sol e que um dia lhe trouxeram a liberdade.
Em nome do sargento subornado que uma madrugada o libertou às escondidas, dando-lhe sem explicações um cavalo, uma sacola de mantimentos e um papel com um nome e um endereço.
Em nome de Olenka, a professora de álgebra que, depois de anos de busca, assim o libertou e o acolheu em sua casa num subúrbio de Varna, e nos anos seguintes tornou-se sua filha adotiva, mestra e secretária.
Em nome do artesão anônimo que gravou a história da família Morisev na bacia de porcelana que Olenka comprara num antiquário, e cujas inscrições releu para ele, ao longo de muitas noites, fazendo-o chorar pela perda do filho e pela salvação da história.
Em nome dos dias de estudo e das noites em claro à luz de lâmpadas fracas, desenhando letras negras em papel branco e repetindo palavras em voz alta.
Em nome do livro em que contou sua história, a dos seus antepassados, e imaginou, descreveu e celebrou as muitas vidas que poderiam ter sido do seu filho atropelado pelos cavalos dos “kalliks”.
Em nome da arte da palavra, que não muda o mundo mas lhe dá feição e sentido, e é capaz de modificar o passado, eternizar o presente e multiplicar o futuro.”