quarta-feira, 23 de maio de 2012

2877) Arte experimental (23.5.2012)



("Cadavre exquis", desenho coletivo de Man Ray, Joan Miró, Max Morise e Yves Tanguy, cerca de 1927)



Para mim, vanguarda artística e arte experimental são coisas diferentes. Toda vanguarda envolve um conceito novo, uma “atitude” nova, que só tem razão de existir por ser nova, por ser – ou pretender-se – original.  

Daí a dificuldade de colocar todas num mesmo saco, e, principalmente, de encontrar um saco onde caibam as vanguardas literárias, cinematográficas, de artes plásticas, etc.  (Mesmo assim, é claro, os críticos continuarão tentando, e publicando os resultados.) 

Eu diria, no entanto, que toda vanguarda, mesmo que envolva um certo tatear às cegas, mesmo que envolva um andar às tontas, parte de alguma coisa definida, uma intenção, um ponto de vista radical, no mínimo a decisão consciente de quebrar com algum tipo de convenção ou de regra vigente na estética do seu tempo. 

Toda vanguarda é vanguarda contra alguma coisa.  Toda vanguarda é luta e polêmica, mesmo que seja a luta desigual entre um artista intuitivo e pouco articulado contra todo o panteão intelectual do seu tempo, o Conselho dos Mil Anciãos que dizem o que é arte boa e arte ruim, que determinam o que os novos artistas podem ou não podem fazer. No simples ato de fazer uma arte vista como ruim, o artista de vanguarda já diz a que veio, mesmo que não consiga dizê-lo verbalmente com a verve dos grandes argumentadores.

Arte experimental é outra coisa, e francamente não vejo nenhuma arte não-experimental que não tenha tido origem em algum tipo de experimento. “Experimento”, no caso, tem menos de experiência científica em laboratório (onde em geral se testa algo já com uma idéia do que pode resultar) e um pouco mais do experimento lúdico de uma criança diante de um material desconhecido, uma engenhoca nova, uma situação inesperada, um objeto que ela não sabe para que serve.  

O experimento lúdico não se faz “contra” um conceito ou um ponto de vista alheio, e não se faz “na direção de” um objetivo imaginado pelo experimentador.  A arte experimental não tem passado nem futuro, é apenas o momento presente, o aqui e agora de quem está se fascinando por uma novidade, ou quebrando a cabeça para desenganchar uma coisa que não dá certo, ou apenas se divertindo. 

A arte experimental nasce das histórias que um pai conta ao filho antes do sono, dos rabiscos que se faz num papel durante um telefonema, das melodias que saem quando a gente muda a afinação do violão e arpeja pra ver no que dá, dos improvisos cênicos de atores brincando de brincar. Arte experimental é forma pela forma, e esta é sua interface com as vanguardas, que muitas vezes, em busca de oxigênio criativo, recorrem a esse prazer da forma para tentar abrir uma janela onde só existiam paredes.





2876) A violência no México (22.5.2012)




O tráfico de drogas e a escalada do combate militar aos traficantes está produzindo uma tal situação no México que dias atrás, no “Jornal Nacional”, a apresentadora Patrícia Poeta afirmou tratar-se de “uma guerra violentississsíssima” (sic). (O que me lembra o famoso verso de Drummond, dirigindo-se ao Deus da Comunicação: “Eis-me prostrado a vossos peses, / que sendo tantos todo plural é pouco”).  Toda ênfase é pouca para qualificar a hecatombe mexicana, uma inebriação pela violência que parece corresponder a um software embutido no DNA daquele bravo povo, capaz de fazer do Dia dos Mortos um carnaval.

Dois livros recentes têm como ambientação essa guerra insensata dos “narcos” como são chamados lá os traficantes.  Uma é Onde os Fracos Não Têm Vez de Cormac MacCarthy (filmado pelos irmãos Coen), que começa com um ligeiro desentendimento entre bandidos durante uma transação de drogas no meio do deserto, que resulta na morte de todos os envolvidos.  Uma maleta com 2 milhões de dólares vai parar na mão de um veterano da Guerra do Golfo, e daí em diante ocorre um banho de sangue, promovido por criminosos que querem tomar-lhe o diabo da maleta. É uma dessas histórias sobre um objeto maldito do qual todo mundo quer se apossar, e que causa a morte e a desgraça de todo mundo.

Outro livro é 2666 de Roberto Bolaño, que não é bem sobre drogas, mas relata dezenas de mortes violentas e misteriosas ocorridas no distrito de Santa Teresa.  O México parece estar passando por uma situação de pré-caos social, mais ou menos como ocorreu com a Colômbia alguns anos atrás. (Não que a Colômbia seja agora um paraíso, mas ao que parece a crise baixou um pouco a fervura.)  Bolaño era chileno, morou muitos anos no México; este seu último romance exprime um pouco desse inferno social, em que todo mundo está à mercê de uma brutalidade inexplicável, de um momento para outro.  E que vigora também em algumas áreas do Brasil.

Numa resenha ao livro de Bolaño, “Slouching towards Santa Teresa”, Adam Kirsch cita o poema “A Segunda Vinda” de Yeats (“que bruta fera, agora que soou sua hora, rasteja rumo a Belém para por fim nascer?”) e comenta que Bolaño parece ver nessa violência insensata e gratuita que assola o México (e o mundo) o sinal de um realinhamento cósmico.  Ele lembra a frase casual de uma personagem do livro: “Ninguém dá atenção a esses crimes, mas o segredo do mundo está oculto neles”. Provavelmente está, e, como acontece com todos os segredos, não os enxergamos por serem grandes demais, evidentes demais.  Caminhamos sobre eles como se pisássemos um mapa gigante com palavras que não conseguimos enxergar por completo.