quarta-feira, 2 de maio de 2012

2859) “Xingu” (2.5.2012)




O filme Xingu de Cao Hamburger faz um resumo-do-resumo da carreira dos irmãos Villas Boas, compactando em uma hora e meia algumas décadas de atividade dos indigenistas que criaram o Parque Nacional do Xingu.  Não sei os detalhes nem conheço os episódios específicos da história dos Villas-Boas (muito bem interpretados por João Miguel, Felipe Camargo e Caio Blat), então não posso avaliar o quanto o filme é fiel à história em que se inspirou. O desafio de um filme assim é comprimir décadas inteiras de expansão fundiária, massacres, aculturações, políticas governamentais, etc. numa história que interesse e emocione o público. Os Villas-Boas têm a vantagem de serem três, o que gera uma dinâmica emocional interna. Seus entreveros pessoais e ideológicos são contrabalançados pela forte solidariedade entre irmãos que se gostam.

Noel Nutels (que aparece no filme, numa pequena ponta) ironizou certa escola de antropólogos chamando-os de “gigolôs dos índios”. São aqueles antropólogos que não se interessam pelos índios como pessoas, e sim como meros pretextos para uma tese de doutorado. Um objeto de estudo, distanciado, humanamente neutro. O oposto disso são os indigenistas como Rondon, Nutels e os Villas-Boas, que se envolviam com os índios (e as índias), criavam laços de amizade pessoal.  Relações assim são sempre sujeitas a distorções, mal entendidos, aproveitamentos recíprocos, e a todas as rusgas, rivalidades, pequenas traições e pequenas agressões que marcam a convivência profunda entre pessoas.  Os três irmãos, no filme, encarnam em diferentes momentos estágios diferentes desse grau de compromisso, que mistura erros e acertos.

Os Villas-Boas diziam: “Se a civilização vai fatalmente alcançar os índios, por mais longe que eles se escondam, é melhor que antes dela cheguem pessoas dispostas a minimizar essas perdas”.  A criação do Parque Nacional do Xingu em 1961 foi uma salvação provisória para algumas nações; outras reservas foram estabelecidas, mas mesmo estas continuam sob ameaça permanente.  Os índios brasileiros vivem uma situação de ficção científica, a de um povo  que de repente se vê invadido por uma raça alienígena, poderosa, implacável, que pensa somente em si e que está disposta, mediante “ardis e violência”, como dizia Darcy Ribeiro, a se apossar se suas almas mediante uma “catequese feroz”, dos seus corpos (como instrumento de trabalho) e de suas terras. Talvez o desastre seja inevitável, e o efeito positivo de ações como as dos Villas-Boas consiga atrasar o processo em meio século apenas. Não dá para saber ainda.  O filme de Cao Hamburger é um pequenino trecho de uma história maior que ainda não acabou.