quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

2800) Frases longas ou curtas (23.2.2012)



Todos os manuais de escrita nos aconselham a usar frases curtas, na voz ativa e em ordem direta. O leitor deve avançar na escrita sem ter que voltar atrás a toda hora. Isto é uma tendência do jornalismo em geral e da prosa realista norte-americana, duas formas de escrever que às vezes são confundidas uma com a outra, até pelos seus próprios praticantes. Eu não tenho nada contra esse estilo; tentar praticá-lo me ajudou muito a tornar mais clara a minha maneira de escrever. Mas de vez em quando eu penso comigo mesmo, como pensa o escritor Pico Iyer neste artigo (http://lat.ms/ycShNj): “se continuarmos neste caminho, áreas inteiras das nossas sensações e da nossa cognição acabarão se perdendo”.

E ele faz uma defesa da frase longa, de muitas orações encapsuladas umas dentro das outras; a Frase Proustiana, que a crítica reverenciou por tanto tempo e com um entusiasmo tão desmedido, embora compreensível , que ela acabou se transformando numa espécie de modelo cruelmente imposto a jovens escritores que nem sempre, mesmo que admirassem Proust, estavam preparados (ou tinham uma inclinação natural) para exprimir-se da maneira que Proust se exprimia, e desse modo o que era para ser o apogeu da forma de um artista fora-de-série acabou se transformando numa fórmula ideal forçada de cima para baixo, que estragou muitas vocações e carreou para si (e para o escritor que a havia burilado tanto tempo atrás) críticas escarninhas e em grande parte injustas, embora inevitáveis no contexto distorcido que as motivou.

Proust ou Hemingway? O autor do Velho e o Mar virou o símbolo da tendência oposta. O mestre da frase curta e seca, que diz tudo e se detém. O próprio Iyer lembra: “Um escritor de muitos recursos como Hemingway ou James Salter é capaz de colocar inúmeras nuances e sugestões mesmo na frase mais curta e mais direta”. A verdade é que deveríamos ser capazes de dominar as duas técnicas, sem querer emular os dois extremos. Iyer define a frase longa como “a série de orações que é cheia de compartimentos, que é pródiga e abundante em nuances de tom e em sugestões, que tem tanto espaço para a quase-contradição e a ambiguidade e para os lugares da memória e da imaginação que não pode ser simplificada, ou posta em palavras banais, e que permite ao leitor manter muitas coisas na mente e no coração ao mesmo tempo, e descer, como se descesse uma escada em espiral, cada vez mais para dentro de si mesmo e para dentro do que não pode ser tratado em termos de ou-isto-ou-aquilo”. Um talento cada vez mais raro, talvez. Mas que nunca desaparecerá, porque é fonte de beleza e aprofundamento; algo como tocar harpa ou jogar xadrez.

2799) Quando meu tempo (22.2.2012)




Quando meu tempo se esgotar, sentirei minhas veias se esvaziando da banda-larga biológica que as percorre; sentirei as cores do mundo sumindo, a granulação da vista aumentando, até que todas as imagens à minha frente se pulverizarão como um redemoinho de pixels negros numa página branca, e acontecerá com minha memória o quer acontece quando uma carta escrita com pequenos montes de pó de café é levada de camelo através de Saaras e simuns.

Surgirá na ponte levadiça do meu Castelo uma carroça de fibra-de-vidro puxada por quatro pares de robôs andrajosos, enferrujados, resfolegantes, e o cocheiro será um orangotango com implantes cibernéticos no lobo frontal. Ao lado deste, estará um produtor executivo vestindo terno preto, camisa chumbo e gravata preta, com um contrato na mão, uma folha de papel onde os termos finais foram redigidos com pó de café e trazidos à minha porta através da guerra da tomada do meu Castelo.

Eu estarei sozinho para me defender, mas de arma em punho, e ironicamente a última arma que escolhi para me defender é o multicontrole remoto de onde consigo acessar quatro palácios de governo, seis divisões motorizadas, noventa e duas bibliotecas digitais, o celular privado de dezoito chefes de Estado e os de suas dezoito primeiras damas, as 500 webcams dispostos em 360 graus em torno do Castelo. Penso com ironia que esta super-arma só mereceria este nome se trouxesse embutida uma minibomba atômica que pudesse pelo menos volatilizar toda a matéria em cem metros de raio, dispersando seus átomos como se fossem grãos de café.

Sem desfraldar bandeiras, sem partir grilhões, sem botar muralhas abaixo com trombetas e rajadas, meu tempo se esgotará. Sem frases altissonantes, sem webcams mundo afora, sem incensos e mantras, sem dó nem piedade, meu tempo se esgotará. Se esgotará espremendo-se a si mesmo para que haja significado em cada átomo, em cada átimo, em cada gotinha de suor e em cada gotinha de tinta que minha caneta pingar no papel ou meu dedo gravar em pixel na tela eletrônica.

Quando meu tempo se esgotar estarei ainda com meu corpo neste mundo real, onde ele poderá ser submetido às humilhações messiânicas da Medicina que prolonga agonias; mas a minha mente, envolvida no vórtice-turbilhão com que desaparecerá em si mesma, será capaz de saber e de distinguir, será capaz de entender e de imaginar. Meu tempo terá se esgotado, minha matéria estará se desagregando aos vendavais furiosos da entropia, mas a mente é mais do que a matéria que lhe deu vida. A mente sobreviverá ao corpo, orgulhosa e brilhante; por um milionésimo de segundo, mas sobreviverá ao corpo, quando meu tempo se esgotar.