sábado, 1 de setembro de 2012

2965) Charles Burns (1.9.2012)




A maturidade de um novo meio de expressão (p. ex., o cinema, os quadrinhos, a TV, o videogame) não é atingida quando produz obras que atingem milhões de pessoas, ou quando ganha prêmios internacionais, ou quando é analisada e louvada nas torres-de-marfim acadêmicas.  Penso às vezes que essa maturidade é atingida quando esse meio de expressão começa a abrigar cada vez mais artistas fora-de-esquadro, artistas idiossincráticos cujas obras não dá para entender muito bem, mas são obras que inquietam, desconfortam. Não trazem mensagens, palavras de ordem ideológicas ou fórmulas mágicas de auto-ajuda.  São obras excêntricas, personalistas, às vezes herméticas, às vezes chocantes – mas aquele meio de expressão está tão maduro e consolidado como arte e como mercado que essas obras são aceitas e incorporadas ao cardápio ofertado ao público, como a coisa mais natural do mundo.

A maturidade do cinema teria sido alcançada, por exemplo, com os primeiros filmes surrealistas de Luís Buñuel entre 1928 e 1930, e se mantém hoje com a obra anticonvencional e difícil de um David Lynch ou um Raul Ruiz.  Nos quadrinhos, um sinal atual dessa maturidade é a possibilidade de ver as novelas gráficas de um cara como Charles Burns, autor de Black Hole  e agora de Toxic (título da edição francesa). Existe muito de David Lynch nas histórias desse desenhista nascido em 1955: a atmosfera constante de pesadelo, uma sensação philipkdickiana de que aquilo que estamos vivendo não está acontecendo de verdade e vai ceder lugar, a qualquer instante, a algo um pouco mais verossímil mas igualmente delirante.  Seus personagens mudam de rosto e de traço ao longo da história, deparam-se com objetos insólitos que não reconhecem (mas que o leitor reconhece de um trecho anterior), são assaltados o tempo inteiro por flash-backs inexplicáveis de coisas terríveis que lhes aconteceram, ou com as quais eles simplesmente sonharam.

Por que a existência de quadrinhos assim avaliza o amadurecimento das HQs?  Acho que é porque demonstra que aquele meio de expressão acolhe o artista de visão intensamente pessoal e que nem faz sucesso de público (vender milhões) nem de crítica (o reconhecimento oficial da “intelligentzia”). É o artista peculiar que corre-por-fora, o azarão da cultura, o cara a quem cabe realimentar de novas idéias e novas formas um tipo de expressão já consagrado que corre o eterno risco de se cristalizar em função do sucesso financeiro ou do reconhecimento intelectual.  Os pesadelos existencialistas e surreais de Burns não pretendem ser best-seller nem mainstream; e o universo HQ, abrigando-os, prova que está vivo e respirando.

2 comentários:

Brontops Baruq disse...


É o que sinto quando leio "Love and Rockets" dos irmãos Jaime e Gilbert Hernandez (http://en.wikipedia.org/wiki/Love_and_Rockets_%28comics%29) ou (http://www.blogdacompanhia.com.br/2011/10/maggie-e-ray/).

O traço remete a Archie, Betty e Veronica (http://en.wikipedia.org/wiki/Archie%27s_Girls_Betty_and_Veronica).

Mas as histórias... Bem as histórias são profundamente "realistas", muito embora apareçam esporadicamente demônios, realismo mágico, espaçonaves, dinossauros, invasão de macacos.

Dentre as influências admitidas pelos irmãos, temos Pixote, Zé do Caixão, o filme Orfeu Negro, luta livre mexicana, Peanuts, punk de L.A, Buñuel, Garcia Marques, etc e etc.

Por outro lado, sei que não é um "quadrinho" pra todo mundo.

Parte da graça é justamente acompanhar aos poucos, como uma novela, e ir descobrindo os motivos por trás do comportamento de tal personagem. Uma espécie de Lost em conta-gotas.


Inicialmente os roteiros de Gilbert eram mais interessante que Jaime. Depois Jaime passou adiante (aliás, MUITO a frente). É curioso acompanhar personagens desde sua adolescência, tornando-se adultos maduros.

É bastante curioso - por exemplo - ver uma garota punk revoltada com o mundo crescer para trabalhar numa escola cuidando de crianças.

É o tipo de desenvolvimento que acontece muitas vezes na vida, mas poucas na ficção...

Braulio Tavares disse...

Esses aí eu nãoconheço, voudar uma espiada depois. Mas vc tem razão, algumas formas de arte nos levam a acompanhar a vida dos personagens, numa escala que mesmo a telenovela (que dura de 6 a 10 meses) não proporciona. No cinema é ainda mais raro. Mas tem,p.ex., as variadas encarnações do Batman, 007, outros heróis.