sábado, 14 de abril de 2012

2844) Reescrever um livro (14.4.2012)



(Neil Gaiman, por Mizzy Chan)

Grande parte das carreiras literárias são resultado de uma experiência inesquecível de leitura que faz alguém pensar: “Quero escrever assim também”. Ninguém começa a escrever sem ter lido algo que o emocionou, que lhe deu uma nova maneira de pensar, de ver as coisas. Jean-Paul Sartre, na infância, copiava à mão romances de aventuras, trocando os nomes dos personagens e algumas peripécias, e os assinava com seu próprio nome. August Derleth era um fã tão ardoroso das histórias de Sherlock Holmes que inventou um detetive praticamente idêntico, mas para poder publicar as histórias trocou o nome do personagem para Solar Pons. Outras vezes, a motivação pode vir de um livro ruim. Diz-se que Fenimore Cooper trabalhava como marinheiro e um dia, numa daquelas longas esperas a que os marinheiros são submetidos, estava lendo um livro de aventuras. A certa altura jogou-o para um lado dizendo: “Que coisa idiota, até eu seria capaz de escrever um livro melhor do que este”. Os amigos riram dele, fizeram algumas apostas, e Cooper escreveu O Último dos Moicanos.

Neil Gaiman, o autor de Sandman, falou numa palestra sobre a impressão que lhe causou a leitura de O Senhor dos Anéis de Tolkien. Totalmente arrebatado pela obra, diz ele, “cheguei à conclusão de que O Senhor dos Anéis era, provavelmente, o melhor livro que poderia ser escrito, o que me colocou numa espécie de sinuca. Eu queria ser um escritor quando crescesse. Não, não é verdade: eu queria ser um escritor naquele momento exato. E eu queria escrever O Senhor dos Anéis. O problema é que ele já tinha sido escrito”. Esse tipo de entusiasmo é resolvido, hoje, pela existência do que chamamos “fan fiction”, histórias escritas pelos fãs utilizando o universo e os personagens de uma obra que admiram. Prolongamentos, extensões amadorísticas de uma obra profissional em sua origem. É uma atividade ironizada por muita gente, mas que acho positiva, porque ajuda o jovem fã a treinar sua mão dentro de um contexto dramatúrgico que ele já conhece bem e onde sabe se movimentar.

Depois da fan fiction, entretanto, pode surgir a literatura profissional. Neil Gaiman não reescreveu Lord of the Rings, em compensação criou a série Sandman de quadrinhos e uma porção de ótimos romances, como Neverwhere, American Gods, The Graveyard Book. Será que são tão bons e tão historicamente importantes quanto obra de Tolkien? Não importa: são os livros de Gaiman, os livros que ele tirou de sua própria imaginação e de sua memória afetiva, livros modernos ambientados em Londres, nos EUA, em cidadezinhas imaginárias... Livros que Tolkien não poderia ter escrito.

4 comentários:

Carlos disse...

Tem um probleminha nessa história: James Fenimore Cooper já havia escrito vários romances antes de O Último dos Moicanos.

Braulio Tavares disse...

Obrigado pela correção. Eu li esse episódio assim como reproduzi. Vai ver que o autor estava resumindo numa só ação um processo que durou anos.

Braulio Tavares disse...

Na Wikipedia achei este comentário:

"It is thought that the novel was written after a challenge made by his wife. His biographer Warren Walker records it this way:

"... In the customary practice of the day he was reading aloud to his wife one evening from a current English novel, but found the story dull. Throwing it aside, he declared, "I could write a better book than that myself." And Susan's challenge to make good his boast resulted in his writing Precaution (1820)."

Diz-se que na época ele gostava de ler Jane Austen, então talvez "Precaution" fosse uma resposta ao "Persuasion" dela.

Carlos disse...

Agora faz mais sentido. A essência é a mesma, mas modificaram a história para deixá-la mais interessante.

Persuasion foi lançado apenas dois anos antes de Precaution. Ler uma obra sem que o seu autor esteja sob a aura da consagração pode gerar uma reação bem mais honesta, pois não temos aquela voz dizendo "este livro é um clássico incontestável, você precisa gostar dele".