segunda-feira, 2 de abril de 2012

2833) A voz da mãe (1.4.2012)



Uma mãe está aprontando o seu bebê de alguns meses para ir a um passeio. “Ih-ih...”, diz ela. “Joãozinho vai ficar tão lindo, tão fofo com essa roupinha nova... ‘- Vou, mamãe, vou ficar a coisa mais linda que mamãe já viu...’ Bora, deixe de ser teimoso, bote o bracinho aqui nessa manga... Eita, que é teimoso igual ao pai! Isso!... Assim!... Tá vendo como fica mimoso? Coisinha fofa de mamãe?... Ah, minha Nossa Senhora, eu tou atrasada de novo! ‘- É mamãe, a senhora não tem jeito mesmo, fica dizendo que a culpa é minha, que eu dou trabalho... Trabalho nada, essa minha mãe é que deixa pra fazer tudo em cima da hora! E depois diz que a culpa é da minha coisinha fofa. Vamos, bote o pezinho. João, fica parado por favor! Ai meu Deus que coisa linda, eu preciso tirar outra foto.”

Esse monólogo interminável das mães (babás, avós, etc., alguns pais inclusive) com as crianças que não falam é um bom exemplo de linguagem literária. Não pelo lado da elaboração técnica, mas no que a linguagem literária (ou pelo menos uma extensa faixa das linguagens literárias) tem de afetivo, de imediato. Uma expressão instintiva, com elaboração super-rápida, do que o “enunciador” está pensando e sentindo.

No exemplo acima, Joãozinho aparece como terceira pessoa descrito por alguém que o observa de fora, e logo em seguida como primeira pessoa, um “Eu” suposto pelo enunciador do discurso, a mãe, falando em nome dele, mas claramente dizendo em nome dele algo que quem pensa é ela própria. Em seguida, instruções impositivas, imperativas (“bote o bracinho”). Para o garoto podem funcionar apenas pelo tom de voz (crianças entendem tons de voz muito antes de entenderem palavras), mas ao pé da letra servem apenas para a própria mãe reafirmar em voz alta a própria intenção. O “é teimoso igual ao pai” é um comentário dela para si mesma, ficticiamente endereçado ao filho. Segue-se um enunciado dela para si mesma (“estou atrasada de novo”), com o filho ausente como interlocutor; depois o garoto volta como 1a. pessoa fictícia, dirigindo-se a ela (“a sra. não tem jeito mesmo...”). E a frase seguinte tem uma torção, começa sendo enunciada pelo bebê (“essa minha mãe...”) e no trecho final volta a ser em nome dela (“...minha coisinha fofa”). Tudo no espaço de poucas linhas. Fazemos isto o tempo todo na vida diária, porque as rápidas variações emocionais (carinho, impaciência, distanciamento, etc.) nos fazem trocar instantaneamente de registro verbal, num discurso ziguezagueante mas sempre sob controle. Quando encontramos algo assim na literatura não percebemos o quanto aquela “prosa complicada” reproduz mecanismos que nós mesmos dominamos.

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