terça-feira, 31 de janeiro de 2012

2780) Traduzir o sertão (31.1.2012)




(Guimarães Rosa, por Baptistão)

A estética literária de Guimarães Rosa é baseada no desprezo à primeira idéia (à maneira mais simples e imediata de dizer algo) e à procura de uma maneira inesperada, mais rica, mais inquietante. Numa entrevista a Gunther Lorenz (1965), ele afirmou: “Como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas”.

Ao que se diz, as melhores traduções de Rosa são as de Curt Meyer-Clason para o alemão e as de Edoardo Bizarri para o italiano. Agora, uma nova versão alemã do Grande Sertão está sendo feita por Berthold Zilly, que já traduziu obras de Raduan Nassar, Euclides da Cunha, Machado de Assis, etc. (ver entrevista a José Geraldo Couto: http://bit.ly/xgKl1S). Zilly mostra, num exemplo, as questões interligadas de ser fiel ao conteúdo e à forma do original:

“Por exemplo, os contrastes entre, por um lado, os períodos longuíssimos, repletos de orações subordinadas e apostos, e por outro os períodos compostos por uma única palavra. Logo na primeira página do livro, há a frase isolada: ‘Mataram’. Referia-se ao bezerro disforme que podia ser o demônio e que os cabras da fazenda de Riobaldo mataram. Meyer-Clason verte esse lacônico ‘mataram’ por ‘Sie habens auf der Stelle totgeschlagen’ (literalmente: ‘Eles o mataram a pancadas imediatamente’). O laconismo extremo do original é impossível de se reconfigurar em alemão, pois precisamos de um sujeito para um verbo, precisamos de um objeto no caso de um verbo transitivo, e além disso, no pretérito perfeito, em geral precisamos de um verbo auxiliar. Mas em vez de limitar o número de palavras, Meyer-Clason acrescenta desnecessariamente um advérbio (auf der Stelle, imediatamente). Além disso, há o problema semântico: indica-se, diferentemente do original, a maneira de matar o bezerro, e ainda por cima de modo equivocado, pois os cabras provavelmente mataram o animal a tiros. Provavelmente vou traduzi-la como ‘Habens getötet’; se a gente traduzisse isso, palavra por palavra, seria mais ou menos ‘Têm-no matado’, Esse tipo de equívoco é frequente na tradução de Meyer-Clason, que é muito boa em outros aspectos. Penso que é natural que a tradução de uma obra desse quilate seja feita em duas etapas. A dele cumpriu seu papel desbravador. Agora tenho que ir além.”

Num mundo ideal, não haveria duas versões idênticas, em nenhuma língua, para qualquer frase do Grande Sertão. Cada tradutor teria que inventar uma expressão nunca dita antes, uma expressão que correspondesse à força-de-novidade da frase em português.

domingo, 29 de janeiro de 2012

2779) A prova do real (29.1.2012)




(Bertrand Russell)

Distinguir entre o que é e o que não é real é, para os filósofos, um problema insolúvel e um passatempo inesgotável. 

É também um dos motivos que levam o cidadão comum, que lê jornal e anda de ônibus, a torcer o nariz para a atividade filosófica, que ele considera uma mistura de enxugar gelo e chover no molhado. O cidadão acha que não há motivo para ficar discutindo se o mundo existe, uma vez que se o mundo não existisse os próprios discutidores do assunto não estariam ali para discuti-lo. 

No passado, o Bispo Berkeley foi um dos grandes defensores do idealismo, da teoria de que o mundo existe apenas como uma idéia, uma espécie de alucinação consensual, dentro de nossas cabeças. Tudo é ilusão, dizia Berkeley. Seus detratores replicavam: “E no entanto o Bispo tem o saudável costume de entrar em sua residência pela porta, e não através da parede”.

Martin Gardner relata um debate divertido entre os filósofos Bertrand Russell e Rudolf Carnap, na Universidade de Chicago, sobre o “phaneron”, o mundo das percepções e dos fenômenos. 

O “phaneron” é tudo que vemos, tocamos, e sentimos; um conjunto de percepções. Nunca conseguiremos provar (ou desmentir) de maneira irrefutável se o que julgamos perceber existe de fato. Só sabemos do universo o que nossos sentidos nos revelam, mas eles podem estar enganados. (Só sabemos disso quando somos vítimas de uma alucinação, um delírio, etc.; desse dia em diante aprendemos a desconfiar do que vemos.)

No meio do debate, Bertrand Russell fez a Carnap a pergunta: 

-- Nossas esposas estão presentes aqui no auditório. Será que elas existem, de fato, ou devem ser consideradas meras ficções lógicas baseadas em regularidades existentes no phaneron de nós dois, seus maridos?

Comentando essa pergunta depois com Gardner, Carnap queixou-se: 

-- Mas não é disso que se trata.  

De fato, os filósofos não afirmam que o mundo não existe. Eles acreditam na existência do mundo, de suas esposas (!) e tudo o mais. Eles apenas gostariam de ter uma prova filosófica, ou seja, uma prova argumental, de que isto em que acreditam é uma verdade; e tal prova não existe.

Essa questão, antiga como o mundo, é talvez a questão mais importante do mundo. (Talvez não seja apenas a mais urgente – aí estão as guerras, as desigualdades sociais, etc., com muito mais urgência.) 

É a mais importante por ser a questão mais total, mais abrangente: ou tudo existe, ou tudo é ilusão. Todos nós já tivemos sonhos intensamente vívidos, que nos deram, enquanto duravam, uma intensa impressão de realidade. Como qualquer um de nós pode ter certeza de que não está sonhando, no momento em que escreve (ou que lê) estas linhas?






sábado, 28 de janeiro de 2012

2778) O segredo de Descartes (28.1.2012)


Existem livros de mistério que não são ficção, não empregam detetives e não investigam um assassinato. São aquelas investigações históricas, arqueológicas, etc., em que o autor começa expondo uma situação misteriosa qualquer, que de fato ocorreu, e aos poucos vai deslindando a trama de lacunas e de pistas falsas, dando explicações, checando hipóteses, até nos dar a solução final. 

Gosto ainda mais desses livros quando se trata de pesquisas sobre história da arte ou da ciência. É o caso de O Caderno Secreto de Descartes (Ed. Zahar, 2007) de Amir D. Aczel. Li-o durante os mesmos dias em que assisti o Descartes de Roberto Rossellini, um filme para TV contando a vida do filósofo francês. 

O livro de Aczel conta a vida de Descartes mas não tem a intenção de ser uma biografia exaustiva (existem várias, que ele cita sempre que necessário). Seu interesse maior é rastrear a história de um caderninho que era mantido pelo filósofo, com parte das anotações em código, e que por um triz não se perdeu, depois de mofar durante séculos nos porões de casas e castelos e de sobreviver a um naufrágio. 

Descartes tinha motivos para usar escrita em código. Por ser um soldado errante, de família nobre, que se alistava em exércitos por espírito de aventura e gostava de viver viajando, era sempre visto com estranheza e desconfiança onde chegava. Numa época de paixões políticas incendiárias vale sempre o ditado de “quem não é nosso, é deles”. Como Descartes não se aliava ostensivamente a nenhum grupo, todos desconfiavam dele. 

Foi suspeito de pertencer ao movimento Rosacruz, foi tido como espião, foi perseguido no meio acadêmico por cristãos radicais que se horrorizavam com seu interesse pela ciência prática. 

O livro de Aczel retrata todas essas polêmicas, estuda os famosos “três sonhos” que inspiraram ao filósofo suas grandes descobertas, documenta a morte do filósofo na corte de Cristina da Suécia (ele deve ter morrido de pneumonia, mas há sempre uma suspeita de assassinato político no ar), e por fim a descoberta e a decifração do seu caderno secreto, graças à cópia manuscrita que Leibnitz fez quando teve acesso a ele. 

Não é nenhum “segredo de Fátima”; basta dizer que Descartes intuiu, antes de todo mundo, o moderno campo matemático da Topologia, e a prova disto está no caderninho. 

Aczel lembra, no início do livro, que as coordenadas cartesianas abriram caminho para os localizadores GPS, para o mapeamento dos pixels numa tela de computador, para a engenharia, a astronomia, e onde quer que seja necessário transformar dados aritméticos em geométricos, ou vice-versa. Poucos homens mudaram tanto o mundo.






sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

2777) O cheiro da grana (27.1.2012)





(cena de "O cheiro do ralo")

A cada ano fica mais intensa a discussão sobre direitos autorais, pirataria, propriedade intelectual. É uma discussão em cima de coisas que parecem inquestionáveis, coisas como o “meu”, o “seu”, a propriedade, a disputa pela posse das coisas, o valor de troca de cada coisa, o valor do trabalho. 

Mas suponhamos que apareça uma certa categoria de músicos que diga: “Minha música está aí para ser ouvida, para despertar a curiosidade das pessoas, botar as pessoas pra pensar”, ou então: “Minha música está aqui para dar alegria às pessoas e deixar o corpo delas feliz. A música é um trabalho de permanente reeducação física, é ritual de aproximação social, o escambau. Minha música serve para isto, e se me pagarem o básico da vida, não quero riqueza. Entrego o resto de graça”.

A irritação de muita gente contra quem pensa o tempo inteiro em termos de “produto comercial” se justifica em casos agudos, quase terminais, como o do personagem de Selton Mello em O Cheiro do Ralo, um cara que faz do dinheiro sua linguagem, seu código Morse, sua única troca de sinais com o mundo. 

Ou o judeu traumatizado de O Homem do Prego de Sidney Lumet, que usa uma loja de penhores para vingar-se do que lhe fez a vida, sobre os capitalisticamente prejudicados de Manhattan.

Dinheiro é a mais viciante das drogas, e nenhum de nós pode passar muito tempo sem fazer uma visitinha a ele. Temos sorte de que seja uma droga leve e cotidiana, como o café, mas o seu apelo não falha em quase ninguém. 

Melhor do que fugir dele é usá-lo, esvaziando-o de muita importância. Existem pessoas que têm como plano de vida aumentar seus rendimentos em 100% todo ano. (Claro que não é possível, mas elas não sabem, e tomam remédio pra poder conviver com essa desilusão.) O problema dos delírios quantitativos é que, na vida real, somar dois bilhões mais dois bilhões não é o mesmo que somar 2+2.

Deve-se exigir o máximo de profissionalismo nas relações de trabalho baseadas no dinheiro, mas não se pode defender que esse seja o único tipo de relação do trabalho artístico. 

A música tem muito a ver com a reunião das pessoas, o encontro, o lazer coletivo, o diálogo dos talentos. Seja num ambiente de alegre bagunça e canções em voz alta, seja num momento mais contido, em que as canções e os instrumentos falam por si. 

Os melhores shows musicais que já aconteceram no Brasil não se deram num palco, mas meio por acaso, num espaço de lazer informal. Fazem parte da vida, não da atividade profissional (por mais bem paga que seja). 

É o palco que reflete a luz do rock feito na garagem, da cantoria num pé de parede ou do pagode no quintal, e não o contrário.





quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

2776) A Guerra de 12 (26.1.2012)




Houve várias “guerras de 12” referentes a 1912, e não duvido que 1812 tenha oferecido algumas guerras famosas também. A que conheço melhor é aquela que o advogado e fazendeiro Augusto Santa Cruz moveu, à frente de 200 jagunços, contra as autoridades de Alagoa do Monteiro, por duas vezes. Na primeira, em 1911, prendeu e desmoralizou todos, em praça pública, mas foi combatido, bateu em retirada e refugiou-se sob a proteção do Padre Cícero, enquanto os desafetos destruíam e incendiavam sua fazenda. Voltou em 12, reorganizou o bando, juntou-se a Franklin Dantas. Tornou a invadir Monteiro, e desta vez foi em frente, invadiu Taperoá, Patos, Santa Luzia do Sabugi, Soledade; foi derrotado apenas em São João do Cariri. A história dessa guerra está no brilhante livro Guerreiro Togado, de Pedro Nunes Filho.

Mas a Guerra de Doze a que me refiro é a que está em curso, a Guerra Digital entre as autoridades e empresas que pretendem interferir na troca livre de arquivos via Internet, e as empresas, grupos ou indivíduos que não admitem isso. Entre 19 e 20 de janeiro a polícia prendeu os responsáveis pelo portal Megaupload e tirou o saite do ar, e o coletivo Anonymous tirou do ar por algum tempo saites das autoridades, como o FBI, e de empresas. O que foi chamado nas redes sociais de Primeira Guerra Digital pode ter sido a primeira escaramuça de uma guerra maior. Até que ponto um lado tem poder policial e político para continuar fechando saites e aprovando leis de censura? Até que ponto o outro lado pode bloquear saites, e que outras formas de represália cibernética (ou não) ele pode utilizar?

Em 1992, Bruce Sterling lançou o livro The Hacker Crackdown, sobre a operação do Serviço Secreto norte-americano, que em 1990 invadiu a “Steven Jackson Games” e apreendeu material da empresa (em 1993 um tribunal considerou essa operação “executada sem cuidado, ilegal, e completamente injustificada”). O livro de Sterling mostra como a Internet recebeu o poderoso afluente das tecnologias telefônicas dos EUA para ser o que é. E foi também o primeiro livro (ou pelo menos o primeiro livro que já era sucesso de vendas) a ser oferecido gratuitamente para download. Neste momento, alguém envolvido nessas guerras deve estar juntando material para escrever um livro análogo. Ou o livro está sendo escrito ao mesmo tempo por pessoas que não se conhecem, em países diferentes, sem que elas mesmas tenham isto em mente; é um livro descentralizado, sem índice, sem ordem cronológica, um livro apenas páginas de texto que vão sendo digitadas no dia a dia por escritores tão anônimos que não sabem que são escritores.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

2775) A arte de rir (25.1.2012)





Um homem e uma mulher, que não se conhecem, viajam por acaso no mesmo vagão de trem noturno. À noite, cada um se deita no seu beliche e pega sua manta. No meio da noite, a mulher se levanta e vai até o beliche do homem: “Por favor, estou com muito frio... Você podia me emprestar sua manta?”. Ele diz: “Tenho uma idéia melhor. Poderíamos fingir que somos casados, só por esta noite!” Ela dá um sorriso malicioso e diz: “Claro... Por que não?” Ele responde: “Então larga minha manta, vai dormir, e não enche!”.

Toda piada se baseia na descrição de uma situação, numa inferência errônea que fazemos sem perceber, e na revelação brusca, na derradeira linha, do que estava de fato acontecendo.  

No presente caso, a inferência errônea é a mesma que a mulher fez, ou seja, de que com esse papo de “fingir que eram casados” o homem estava propondo que fizessem sexo para se aquecer. Com a frase final dele, ficamos sabendo o que de fato ele estava pensando. 

Achamos graça porque é uma versão plausível dentro da nossa cultura, em que o casamento é muitas vezes abordado como uma fonte permanente de pequenas disputas, discussões, pequenos egoísmos, pequenas indelicadezas. As duas possibilidades são igualmente plausíveis (o homem quer sexo; o homem quer ser deixado em paz), e a habilidade da piada (e de quem vai recontá-la) é dar a entender uma coisa e surpreender com a outra.

Matthew Hurley, co-autor de Inside Jokes: Using Humor to Reverse-Engineer the Mind (MIT Press, 2011) afirma que nossa mente trabalha sem parar, fazendo hipóteses e presumindo coisas a respeito de tudo que nos cerca, tentando não ser apanhada de surpresa.  

Acontece que um número enorme dessas hipóteses se revelam erradas e são descartadas, mas lidar com elas faz parte de nossa atividade mental. Será que esse motoqueiro vai mesmo cortar na frente do meu carro? Será que o guarda me viu passar o sinal vermelho? Será que aquele é Fulano no carro ao lado? 

Muitas dessas possibilidades podem gerar situações tensas ou constrangedoras que nunca se verificam, mas nossa memória não as abandona totalmente. O humor serve muitas vezes como uma reconstrução dessas coisas que não aconteceram, muitas delas por serem absurdas ou altamente improváveis; e a descarga nervosa representada pelo riso é nossa reação diante de algo absurdo que ameaça acontecer e não acontece, ou então algo comum que acaba acontecendo de maneira absurda.

Diz Hurley (http://b.globe.com/sXfzh7): “O humor é agnóstico com respeito ao conteúdo, porque consiste apenas na descoberta de uma falsa suposição, e este processo não requer nenhum conteúdo em especial. (...) O que é universal no humor é o processo, não o conteúdo”.




terça-feira, 24 de janeiro de 2012

2774) A 1a. Guerra Digital (24.1.2012)



A Primeira Guerra Digital ocorreu entre quinta e sexta-feira passadas, quando o coletivo Anonymous, reunindo cerca de 5.600 computadores espalhados pelo mundo, tirou do ar os computadores do FBI, numa represália ao fechamento do Megaupload, saite de compartilhamento de arquivos, acusado de pirataria digital. É provável que não tenha sido a primeira (sempre haverá quem já viu outras); a única certeza é de que não será a última, e de que em breve será tão permanente e banal quanto as balas perdidas.

Não foi uma batalha bélica, não houve perda de vidas nem de patrimônio material. Uma dúzia de presos, parece. Não houve tiroteio; apenas ofensivas e contraofensivas virtuais por parte dos dois grupos. O grupo pró-SOPA (que defende a lei Stop Online Piracy Act), numa carga fulminante ladeira acima, invadiu e apossou-se do território Megaupload, de aliados do Anonymous. A invasão se deu em circunstâncias tais que dificilmente esse território será retomado. Já o Anonymous mostrou que não pode anexar território para si (provavelmente é disperso demais para isto), mas, em contrapartida, bombardeou uma dúzia de “pontes”, e engavetou o acesso a pontos cruciais do território inimigo: FBI, agências do governo, grandes corporações da música e do cinema.

O grupo da SOPA perdeu a chance de forçar uma discussão e votação imediata da lei, mas apossou-se de um ativo de grande porte, sem falar na vitória moral e no marketing. A guerrilha internética do Anonymous mostrou força, e usou inclusive, como veículo de ataque, computadores de usuários distraídos; convergiu sobre as redes dos adversários e as tirou do ar. 1x1.

São agitações como as da Primavera Árabe, Ocupem Wall Street, etc. Ocorrem confrontos, mas para as multidões anônimas não interessa muito o combate físico, inclusive contra um adversário bem aparelhado. As baixas mais sérias serão um efeito colateral, um risco aceito. Elas procuram a ocupação de espaços, o corte do fluxo de informações do inimigo. Não é muito diferente de ocupar ruas, barricar passagens, impedir o tráfego, intimidar os comerciantes, fechar a rua na marra.

Grupos assim são multidão apenas no sentido de serem plural e sem rosto; mas sua movimentação é a de um grupo especial de guerrilha. O grupo deve misturar anciãos, adultos, jovens, pessoas muitíssimo bem treinadas, uma rapaziada nerd e desocupada, com disposição para um novo game. Muitos mergulharam nisso às cegas, uns por aventura, outros por missão, outros por mera alegria de viver, outros por indignação cívica, outros por fama e fortuna. Juntos, podem ir da terra ao céu num pulo, como podem voltar do céu à terra num baque.

domingo, 22 de janeiro de 2012

2773) Souvenirs (22.1.2012)




Trouxemos da Malásia um casco de tartaruga, laqueado num tom de verde-lodo que lhe confere um aspecto de contemporâneo da Atlântida, algo encontrado por acaso por um mergulhador milionário que testava seu novo aqualung com amigos, num fim de semana. 

Da Califórnia trouxemos uma coleção de máscaras de borracha em forma de focinho de cão, de lobo, de leão, máscaras que parecem ajustar-se perfeitamente aos nossos rostos, e que ao serem tiradas deixam a sensação de quem de repente se vê privado de todos os seus dentes.

Da Capadócia trouxemos uma pedra-pomes do tamanho de um travesseiro, que reproduz em miniatura as cidades-galerias ocultas nas cavernas de calcáreo. 

De Málaga trouxemos rosas vermelhas, cada uma mais vermelha do que as outras, como se estivessem disputando entre si não só a nossa atenção como também as chances de um contrato milionário para aparecerem diariamente na televisão das rosas. 

De Benares trouxemos um elefante vivo, pouco maior que um cão. 

De Addis-Abeba trouxemos um robô de madeira que bate num pequeno bombo e funciona com duas pilhas AA, do tipo comum, e com isto passa o dia inteiro batendo no bombo, abrindo e fechando a boca sem emitir sons.

De Berlim trouxemos uma bomba da II Guerra, ainda intacta e capaz de explodir; foi colocada na sala, onde as visitas podem tocá-la com curiosidade, e, quem sabe, um dia... (a angústia do perigo nos excita). 

De Brunei trouxemos uma pequena peça de artesanato feita em papel de seda e fios de cobre muito finos; sua estrutura lembra as camadas sucessivas de uma cebola, sendo abertas por um corte longitudinal que se alarga puxando de dentro de si a camada seguinte e fechando-se do lado oposto, como um leque esférico, de tal modo que, quando se fecha a última camada, emerge de dentro dela a primeira de todas, e tudo recomeça em loop.

De Nairobi trouxemos uma serpente empalhada (ou embalsamada – não entendemos bem a diferença), cravejada ao longo do corpo com toda sorte de objetos pontiagudos: uma agulha hipodérmica, uma seringa contendo heroína malhada, uma varinha do jogo de pega-varetas, uma curiosa tesourinha-de-unhas com três lâminas, uma ponta de flecha neolítica, uma caneta tinteiro Mont Blanc, um parafuso de aço com rosca canhota; cada um corresponde a uma graça alcançada. 

E de uma cidade serrana, no nordeste do Brasil, trouxemos uma pedrinha encontrada na calçada enquanto caminhávamos de volta para o hotel; um seixozinho que rolava à toa, que todos chutavam ou pisavam sem enxergar; não nos custou nada mas hoje não o trocaríamos por todo o resto de nossa coleção, guardada nos seis andares do nosso museu hexagonal de vidro fumê.






sábado, 21 de janeiro de 2012

2772) Raymond Queneau (21.1.2012)




(Cent Mille Milliards de Poèmes)

Se eu fosse para uma ilha deserta (engraçado como todo escritor é ameaçado com isto, e é obrigado a escolher o livro que vai levar!) levaria Obras Completas de Raymond Queneau. Por muitas razões; a mais pragmática delas é que a obra de Queneau é imensa e variada. Num só volume eu teria romance, conto, poesia; romances fantásticos como As flores azuis, romances humorísticos como Zazie no Metrô; poesia cósmica; jogos de palavras; exercícios de estilo; recenseamento dos escritores e cientistas fora-de-esquadro.

Queneau era um trocadilhista, um fazedor de frases, um rei do texto de duplo sentido, ou melhor, do texto que parece infinitamente capaz de novos sentidos. Era um matemático diletante e estabelecia às vezes regras matemáticas que orientavam a composição de um livro, como o número de linhas de cada capítulo (Osman Lins fazia algo parecido em Avalovara). Sua obra tinha um impulso lúdico, irreverente, capaz de desviar o assunto no meio de uma argumentação seríssima para fazer um trocadilho bobo e depois prosseguir em alto nível retórico. Seus livros são intrincados e brincalhões.

Sua experiência mais ousada foram os Cem Mil Bilhões de Poemas, de 1961, um texto combinatório em que as 14 linhas que fazem o soneto podem ser recombinadas em 10 matrizes diferentes, dando o total possível previsto no título. Queneau chegou a editar um livro com as linhas dos sonetos separadas em faixas horizontais, numa edição que bibliófilos já chamaram “uma das mais belas aventuras tipográficas e criativas do século”. Uma experiência que agora se realiza plenamente com a Internet. Neste saite (http://bit.ly/vuDr65) é possível recombinar não apenas os versos originais em francês como a tradução de cada um para o inglês.

Queneau teve a precaução, é claro, de fazer com que cada linha específica do soneto tivesse a mesma rima em todas as versões, para permitir o rodízio entre elas. Além disso, as ligações sintáticas entre os versos, embora tênues, continuam permitindo, após a troca das linhas, uma leitura corrida, fazendo encadeamento com os novos sentidos. É uma façanha técnica impressionante. O resultado, como ele comentou, é uma quantidade de poemas que nem toda a humanidade poderia ler. Alguém dirá: Isso é poesia? A resposta é: Nem toda poesia pode ser assim; isto é apenas um vislumbre do quanto a poesia é capaz. Assim como as exibições de uma ginasta olímpica nas barras assimétricas servem para nos lembrar do que o corpo humano é capaz, mas ninguém espera que todos os corpos se comportem daquela maneira no dia-a-dia. Queneau escreveu O Maior Poema do Mundo; isto não é tudo, mas também não é pouco.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

2771) Reality Shows (20.1.2012)



(The Truman Show)

Não sei quem batizou de “reality shows” esses programas de TV, mas posso especular sobre suas intenções. O termo “realidade” deve ter aparecido aí para se contrapor a outro, que poderia ser ficção, encenação, representação, etc. Seria, em tese (sei lá se os autores pensaram assim; estou fazendo aqui a mais arriscada e a mais freqüente das especulações: tentar adivinhar o pensamento de pessoas desconhecidas em circunstâncias ignoradas), um programa em que coisas reais, não-manipuladas, aconteceriam de verdade, diante das câmaras. Algo mais próximo de um documentário do que de uma novela.

Claro que não é isso que vemos na tela. O que vemos tem um grau de elaboração e de manipulação igual ao de uma telenovela. E em alguns casos maior, porque nas novelas os atores são precisam ser manipulados, oferecem-se de bom grado (por um bom salário) para decorar e interpretar aquelas cenas, enquanto que num Reality Show os participantes precisam ser induzidos a algo, precisam morder as iscas que a produção lhes oferece o tempo inteiro pra ver no que vai dar.

Outra coisa: dizer que somos “voyeurs” diante de um programa assim é um uso errado desse termo. O voyeur é alguém que quer ver sem ser visto, quer espreitar o comportamento de alguém sem que esse alguém saiba que está sendo espreitado, como naqueles bordéis do século 19 em que cavalheiros ricos pagavam para ficar atrás de espelhos falsos, vendo o que os outros clientes faziam na cama. (Existem, claro, ocasiões específicas em que voyeurs e exibicionistas se relacionam de comum acordo, mas isto é uma variação do fenômeno original.) Portanto, um Reality Show só forneceria o que promete se os participantes não tivessem a menor idéia de que estavam sendo filmados e assistidos. Isto faz do filme O Show de Truman de Peter Weir o Reality Show por excelência, mesmo que todos os participantes fossem atores e apenas Truman estivesse pensando que aquilo era “a realidade”.

O grau de espontaneidade nesses “shows de realidade” é zero, tanto assim que a produção precisa criar tensões, competições, ameaças, além de produzir festinhas e embebedar os participantes, para extrair deles algum tipo de comportamento que não seja apenas de caras e bocas, ou o fortão olhando o bíceps no espelho. E na ânsia de fazer os participantes se excederem, é a produção quem se excede, e de repente se vê flagrada numa sinuca qualquer. É um dos raros momentos, no programa, em que algo acontece sem estar totalmente previsto ou totalmente controlado, pela interferência incômoda da realidade – que é a coisa menos bem-vinda num Reality Show, onde tudo se esforça para apenas parecer real.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

2770) FC tupiniquim (19.1.2012)




(http://bit.ly/zikEvD)

Como escrever literatura de ficção científica no Brasil? Este problema não é muito diferente do problema que deve ter se colocado a muitos escritores dos séculos 17 e 18 que queriam apenas escrever literatura brasileira, não importa sobre o quê, mas que fosse escrita no Brasil e sobre o Brasil. Havia alguns milhares de intelectuais formados em Coimbra e sei lá onde mais, cheios de ambições literárias, querendo cantar em prosa e verso aquele mundo bárbaro e fascinante. Liam grego e latim, tinham estudado Camões, Virgílio, Homero. Queriam escrever sobre o Brasil, e ser lidos pelos brasileiros.

Esses escritores-em-projeto tinham como instrumento uma tradição literária basicamente portuguesa e européia, e eram forçados a usar essa tradição para refletir uma realidade, a do Brasil dessa época, que deve em muitos momentos ter lhes parecido intraduzível, irreproduzível através daquele instrumento. A começar pelo fato de que, naquela época, a língua falada nas ruas e nas casas do Brasil não era propriamente o português de Camões e do Padre Vieira, o português que os literatos aprendiam nas universidades e nos claustros. O Brasil desse tempo era um fervilhar de feitorias, engenhos, fazendas e arraiais cheios de gente seminua e analfabeta, falando em nheengatu, a famosa “Língua Geral” criada pelos jesuítas. Fazer literatura assumindo o ponto de vista daquela gente bárbara era uma missão impossível para aqueles literatos. O que fazer, então? Prolongavam a literatura portuguesa, usando suas formas, seus estilos, seus gêneros, seus temas, sua linguagem. Essa literatura, principalmente a poesia, era uma espécie de verniz verbal que recobria a realidade rude, e resolvia para os autores o problema da auto-expressão. De Gregório de Matos aos inconfidentes, foi este precário equilíbrio que ajudou a produzir uma poesia brasileira. (A prosa, no sentido que a vemos no romance, ainda engatinhava.)

Há alguma semelhança entre essa situação e a situação do escritor-fã de FC no Brasil, porque ele também tem nas mãos um instrumento literário forjado no estrangeiro, e que para refletir o mundo que o escritor tem à sua volta precisa ser reformatado. Canibalizado. Desmanchado e recomposto. O erro do escritor brasileiro de FC é achar que seu compromisso é o de expandir a FC que aprendeu a amar como leitor. Talvez seu dever seja o de explodir essa literatura, enxertá-la de contradições capazes de gerar atrito e fagulha em contato com formas de pensar, de falar e de agir que inexistiam no mundo de quem gerou o mundo das espaçonaves, das viagens no tempo, dos impérios galácticos, das catástrofes cósmicas, dos super heróis.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

2769) A palavra peneirar (18.1.2012)




Grande parte do nosso vocabulário se forma através de estágios sucessivos. No primeiro, usa-se uma palavra para fazer uma alusão direta a alguma coisa concreta e familiar a todos. No segundo, essa palavra é transposta para significar algo também concreto, mas completamente diferente, por um processo de semelhança, alusão, associação de idéias, etc. No terceiro, passa a designar uma noção abstrata que já não tem nada a ver com a coisa concreta original; ninguém seria capaz de traçar o percurso até a imagem que deu origem a tudo. Toda aquela rede de utilizações anteriores produziu um sentido genérico que justifica o uso, mas fica difícil entender como o significado “Z” veio do significado “A”.

Usarei o exemplo do verbo “peneirar”, tão nordestino. Ele indica os movimentos circulares que uma peneira faz nas mãos de uma cozinheira; este é o primeiro estágio. Num segundo estágio, passa a indicar qualquer movimento parecido, daí o uso feito por Luiz Gonzaga em “Marimbondo”: “O marimbondo vindo peneirando as asas / pra entrar em nossa casa / chega chuva pro sertão...”. A origem do verbo fica ainda mais clara na canção “Peneirou Gavião”, em que Jackson do Pandeiro compara diretamente os dois movimentos: “Peneirou, peneirou, peneirou gavião / nos ares para voar; / tu belisca mas não come, gavião / da massa que eu peneirar”. O gavião é um exemplo melhor que o marimbondo, porque se parece mais com uma peneira com aquele seu jeito de planar baixo, oscilando horizontalmente, sem subir nem descer.

Ora, daí a pouco qualquer movimento circular começa a ser açambarcado por esse verbo, por associação de idéias – como o dos quadris de uma mulher que dança ou se rebola. Em O Mundo Mágico de João Redondo, de Altimar Pimentel, vê-se uma fala assim: “ROSINHA - O que é seu tá guardado, meu fio. Eu me chamo Rosinha, né Quitéria não. Vamo, seu tocadô, qu'eu quero penerá uma coisinha! (A música recomeça e ela dança) Ai, ai, ai meu tempo!”.

O verbo acaba assumindo a conotação de “mulher rebolando, atraindo atenções masculinas”, como na canção “O mistério do fundo do olho” de Lula Queiroga: “Tô peneirando, peneirando / Bar da Mira, Burburinho / Pina de Copacabana / Galeria Joana Darc, peneirando / Essa menina tem classe / até quando me deixa sozinho”. E desse sentido erótico, provocativo, o verbo ganha um sentido semelhante mas abstrato, também como “oferecer-se de maneira explícita, não disfarçada”: “Fulano está há anos no PDT mas agora vive se peneirando para ir pro PSD”. Cada novo significado abre caminho para novas associações de idéias serem feitas, cada vez mais afastadas do sentido inicial.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

2768) Escritor pop (17.1.2012)



(ilustração: Domitille Collardey)

Roberval é um escritor pop. Durante séculos a classe literária mofou no abandono, no anonimato, morando em mansardas, rabiscando trilogias à luz de velas, e vendo com inveja o modo como os repórteres e os “paparazzi” se amontoavam à porta dos músicos populares e das estrelas do cinema. Mas o mundo mudou. O marketing evoluiu. Os “publishers” perceberam que se era fácil transformar um brucutu analfabeto numa celebridade, deveria ser fácil fazer o mesmo com um intelectual de óculos. E o fizeram com Roberval, cujos romances agora vendem centenas de milhões de exemplares em trinta idiomas.

Roberval desce à rua para ir na padaria, e a imprensa se acotovela: “E aí? Terminou o capítulo?”. Ela se refere, claro, ao capítulo 18 de seu romance vampiresco “Tatuagem de Sangue”. Roberval (ainda novato, ainda se julgando na obrigação de responder tudo que lhe perguntam), diz: “Ainda não... Tive que parar agora de tarde, a cena se passa em Varsóvia, tive que consultar o Google Earth...” Flashes cintilam. Em segundos, a frase estará no YouTube; fãs poloneses abrirão bandeiras de saudação no telhado, mesmo sabendo que a chance de serem vistos pelo astro é remota.

Se fosse sempre assim era uma maravilha. Mas, e quando Roberval deixa vazar pelo Twitter a morte de um personagem? Tem que desplugar os telefones, trancar-se em casa. Já foi seguido até o aeroporto pelo fã-clube de uma vítima. Outro momento delicado é o da assinatura de contrato com a editora. A imprensa se informa e o bota no canto da parede: “Por que cobrou 15% na tradução britânica, e somente 10 na tradução finlandesa?” E tome a vasculhar seus emails, e tome tentativas de quebrar seu sigilo bancário. Emissários de outras editoras vêm trazer-lhe ofertas irrecusáveis, que ele recusa sem piscar o olho. Queixa-se à esposa de que o celular do seu agente vive desligado; ela comenta que talvez lá em Ibiza o sinal não pegue.

O avanço de cada capítulo é acompanhado pela TV a cabo e pelas câmaras dos saites literários como se fosse a votação de uma emenda constitucional. É preciso justificar cada frase, porque entre seus leitores há os que torcem pelo vampiro, os que torcem pelo cientista, os que torcem pelo primaz da Igreja Ortodoxa (presente em todos os livros), os que torcem pelos agentes da Exterpol... E o pior é que depois do seu mais recente e avassalador sucesso a editora que obrigá-lo a usar um editor de texto capaz reproduzir num blog, em tempo real, tudo que ele digita e deleta em casa. Quando o mundo lhe dará um segundo de trégua? Dura é a vida de quem escreve com um milhão de fãs olhando por cima do seu ombro e dando palpites.

domingo, 15 de janeiro de 2012

2767) “20 Mil Léguas” (15.1.2012)



A reedição de 20 Mil Léguas Submarinas pela Ed. Zahar parece ser a mais completa até agora, principalmente pelas mais de 200 notas explicativas do tradutor André Telles, e pelo fato de que reproduz o texto completo do original. Esta é uma proposta importante porque poucos autores terão tido sua obra tão mutilada quanto Julio Verne, e quem já o leu entende por quê. Verne foi praticamente o criador da ficção científica “hard”, que se baseia meticulosamente nos conceitos científicos, e procura conseguir o máximo de plausibilidade. Em toda a obra de Verne são muito poucos os elementos fantásticos, coisas que não podem ocorrer no mundo como o conhecemos. Verne falou sobre façanhas científicas que ainda não tinham sido postas em prática em obras como 20 Mil Léguas..., Da Terra à Lua, etc.; mas apesar de cometer erros eventuais ele raramente distorce os fatos científicos. Verne se via no papel de um educador, e às vezes parecia um mestre-escola bretão, como na sua famosa reação indignada diante de certos livros de H. G. Wells: “Ele inventa!”.

Na introdução a esta edição do livro, Rodrigo Lacerda comenta (poucos estudiosos de Verne o fazem) os recursos usados pelo autor para dourar a pílula das numerosas descrições científicas que era seu propósito incluir. Verne e seu editor, Hertzel (o grande inspirador das “Viagens Extraordinárias”), ambicionavam “resumir todos os conhecimentos geográficos, geológicos, astronômicos e da física coletados pela ciência moderna, e refazer, sob a forma atraente e pitoresca que lhe é própria [a Verne] a história do universo”. Esta ambição lembra o projeto da enciclopédia fantástica de “Tlön” de Jorge Luís Borges: “Conjetura-se que este ‘brave new world’ é obra de uma sociedade secreta de astrônomos, de biólogos, de engenheiros, de metafísicos, de poetas, de químicos, de algebristas, de moralistas, de pintores, de geômetras... dirigidos por um obscuro homem de gênio”.

A narrativa típica de Verne, portanto, é salpicada de pequenas explicações científicas que vão de poucas linhas a várias páginas de extensão. Se somarmos a isto as notas de pé de página necessárias para situar, hoje, informações que eram de conhecimento público na França de 1871, resulta que poderíamos ter uma edição eletrônica desta obra em forma de hipertexto. As explicações e digressões científicas ficariam ocultas mas poderiam ser reveladas a um clique do mouse, bem como notas posteriores feitas pelos editores e tradutores de Verne. A mutilação que os seus livros sofreram tantas vezes se tornaria meramente parcial, superficial; o texto completo estaria contido na versão, para ser lido por quem se interessasse.

sábado, 14 de janeiro de 2012

2766) Coração Numeroso (14.1.2012)




É um dos meus poemas preferidos de Drummond, um dos primeiros que me conquistaram por completo. Até hoje me surpreende que já aparecesse em seu livro de estréia, Alguma Poesia (1930), por ser de algum modo um poema-síntese que parece já exprimir a visão de um autor maduro. Fala do Rio, mas deve se referir a alguma viagem ocasional, pois precede a mudança do poeta para lá: “Foi no Rio. / Eu passava na Avenida quase meia-noite. / Bicos de seio batiam nos bicos de luz estrelas inumeráveis. / Havia a promessa do mar / e bondes tilintavam, / abafando o calor / que soprava no vento / e o vento vinha de Minas”. Soa como uma síntese do complexo processo que fez do poeta um carioca adotivo sonhando eternamente com uma Minas que passou a existir apenas na sua memória e imaginação. Drummond, mesmo escrevendo fartamente sobre o Rio, nunca tirou Minas da cabeça. Sua obra é uma obra de exílio e de aceitação do exílio; de ida sem volta e de aceitação amadurecida do fato de não poder mais voltar. Este poema é sua primeira, precoce e definitiva declaração de amor pelo Rio de Janeiro.

A falta inicial de Minas e a inadaptação crônica do poeta com o mundo o fazem dizer, vagando a esmo na cidade estranha: “Meus paralíticos sonhos desgosto de viver / (a vida para mim é vontade de morrer) / faziam de mim homem-realejo imperturbavelmente / na Galeria Cruzeiro quente quente / e como não conhecia ninguém a não ser o doce vento mineiro, / nenhuma vontade de beber, eu disse: Acabemos com isso”. Quem não já se sentiu assim numa cidade grande e anônima, sem conhecer ninguém, sem se encaixar? Numa cidade onde a vida humana soa alienada, distanciada, estrangeirizada e irredutível? Quem não já vagou de noite sem ter porta a que bater, nome que chamar, recanto onde dormir? Acabemos com isso, claro.

“Mas” (diz o poeta) “tremia na cidade uma fascinação casas compridas / autos abertos correndo caminho do mar / voluptuosidade errante do calor / mil presentes da vida aos homens indiferentes, / que meu coração bateu forte, meus olhos inúteis choraram. // O mar batia em meu peito, já não batia no cais. / A rua acabou, quede as árvores? a cidade sou eu / a cidade sou eu / sou eu a cidade / meu amor”. É, pra mim, um dos grandes momentos da poesia de Drummond: o instante em que a mera existência da cidade toma de assalto o indivíduo numa espécie de náusea sartreana ao contrário. Escolhas verbais, pontuação, fragmentação sintática do texto, a equivalência sutil mar=coração, esse inesperado e insubstituível “meu amor”... É um momento de fusão perfeita entre o ser e o mundo, entre a idéia, a emoção e a palavra. Drummond insuperável.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

2765) Literatura Conceitual (13.1.2012)



Tenho falado aqui nesta coluna sobre a Literatura Conceitual, aquela que ao invés de pretender apenas contar uma história, como se faz desde que o mundo é mundo, inventa um truque ou efeito qualquer, e produz textos que da primeira à última palavra obedecem a essa regra estrutural. Esse tipo de literatura é geralmente praticado por grupos de autores de vanguarda. Os Surrealistas disseram: “E se a gente escrevesse textos sem pensar, sem escolher, sem criticar, escrevesse a toda velocidade o que a mente inconsciente nos diz?”. Os membros da Oulipo (“Ouvroir de Littérature Potentielle”) disseram: “E se a gente criasse regras matemáticas ou geométricas, totalmente arbitrárias, e produzisse textos de acordo com elas?”.

Esse procedimento não é privilégio das vanguardas. Aliás, o que as vanguardas fizeram (justificando seu nome) foi antever processos artificiais (ou pelo menos mais artificiais do que os processos em voga no seu tempo) de produzir textos, os quais começaram a ser postos em prática décadas depois pela literatura de massas. Ultimamente, por exemplo, alguém disse: “E se a gente reescrevesse romances clássicos cujo texto está em domínio público, enxertando neles novos parágrafos, ou capítulos inteiros, com a finalidade de transformá-los em livros de terror?”. E daí surgiram Orgulho e Preconceito e Zumbis de Jane Austen e Seth Grahame-Smith, Razão e Sensibilidade e Monstros Marinhos de Jane Austen e Ben H. Winters, Dom Casmurro e os Discos Voadores de Machado de Assis e Lúcio Manfredi, e vários outros. Esses romances trazem para a literatura a prática, hoje comum na música, que consiste em pegar os elementos originais de discos já gravados e fazer um “remix”, um “mash up”, etc. – ou seja, recombinando, eliminando elementos do original, fundindo-os com os de outras obras, e assim por diante.

Algum vanguardista escandalizado pode espernear dizendo que o termo “Literatura Conceitual” não se aplica a essa prática, que (segundo ele, talvez) não passa de uma jogada comercial. Para mim se aplica, pois Literatura Conceitual não passa de uma literatura que adota um princípio básico, meio arbitrário, de estrutura, de forma ou de técnica, e se atém a ele de maneira radical e inflexível. Comparar os livros citados acima com as obras dos surrealistas e dos oulipoetas revela apenas que as vanguardas são sempre mais bem-humoradas e brincalhonas do que aparentam; e que o público desses romances populares é capaz de entender um jogo conceitual, desde que seja feito em cima de conceitos que lhe são familiares e resultem em processos que eles sejam capazes de acompanhar.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

2764) A Mega Cena (12.1.2012)



(Rolling Stones, "O Banquete dos Mendigos")

A cena musical brasileira foi durante muitos anos uma espécie de Castelo de Caras, recebendo em seus esfuziantes salões aquelas poucas dezenas de felizardos que conseguiam o objetivo das gravadoras de discos: vender alguma coisa em torno de um milhão de discos. Isso bastava para que o artista mudasse de vida, mudasse de classe social, comprasse uma cobertura de frente pro mar, uma fazenda, meia dúzia de carros importados e assim por diante. Quantas vezes estive numa mesa de restaurante ouvindo alguém dizer: “Semana que vem embarco para Aruba com minha banda, minha equipe e minha família, por conta da gravadora. Vou passar uma semana lá, gravando o clipe do meu próximo disco”. Gravadoras sempre rasgaram montanhas de dinheiro com farras nababescas, lançamentos de discos com boca-livre e uísque importado dando no meio da canela, brindes e “kits” de divulgação cheios de riquetriques que enriqueciam os fabricantes sem somar nada ao disco divulgado. O objetivo dessa cena era espalhar pelo Brasil a idéia de que, fazendo o disco certo, cada um de nós podia virar milionário, comprar um avião, tornar-se príncipe sertanejo ou imperador do rock.

Isso ainda não acabou, claro. Olhem a programação das casas noturnas patrocinadas por telefônicas, ou os shows pagos por prefeituras pelo Brasil afora. Mas a atual cena da música está estrangulando esse degrau mais alto do pódio, que daqui a algum tempo talvez até desapareça. Ninguém mais vai vender um milhão de discos, ninguém mais vai comprar mansão com dinheiro de música, ninguém vai gravar clipe nas Bahamas nem marcar entrevista coletiva em Acapulco. O mercado se expande, mas sua tendência é se expandir mais horizontalmente do que verticalmente, em termos de cifrões – e não pode existir notícia melhor do que esta.

A cena musical megalomaníaca vai minguar e se extinguir. Em vez de um cara vendendo um milhão, teremos cem artistas vendendo dez mil cada um. Talvez isso não dê para eles construírem uma casa ou comprarem uma BMW, mas ora, quem tiver esses objetivos que se candidate a deputado! A música ficará para os que querem fazer música, não para os que querem ficar ricos. O objetivo de uma carreira musical será tirar um som, espalhar uma idéia, produzir uma emoção, alegrar uma galera, embalar um romance, atacar um sistema, captar um momento. Se a música é essa loteria imprevisível, onde o sucesso nunca está garantido, ela vai deixar de conceder o prêmio da Sena, e o máximo a que os artistas podem ambicionar é a Quina ou a Quadra. E teremos uma cena musical com milhões de músicos não-ricos, mas vivendo de música, em cada esquina e em cada quadra do Brasil.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

2763) Dicas de Billy Wilder (11.1.2012)



(Billy Wilder)

O diretor Cameron Crowe fez com o mestre Billy Wilder algo parecido com o que François Truffaut havia feito com Hitchcock: um livro (Conversations with Billy Wilder) de discussão minuciosa sobre os segredos do cinema. Wilder é um dos narradores mais inteligentes do cinema americano, e suas observações vão ao cerne da arte da narrativa visual. Como todo mundo sabe, o artista incompetente não consegue seguir as regras, o artista medíocre segue as regras, o artista de talento cria regras para os demais, e o gênio cria regras que só se aplicam a ele próprio. Wilder pertence ao terceiro tipo.

Ele diz, por exemplo: “O público é volúvel. Agarre-o pela garganta e não o solte”. O cinema é uma diversão popular. Por mais que as pessoas estejam trancadas numa sala escura, sentadas em poltronas presas ao chão, viradas para a tela, as possibilidades de distração são infinitas. Acho que foi Caetano Veloso quem disse que na Europa as pessoas veem um filme como quem assiste uma ópera, e nos EUA veem um filme como quem assiste um jogo de basquete. É pipoca, é refrigerante, é namorada, é turma, é brincadeira, é jogar bolinha de papel na cabeça dos amigos... Tem que dar uma trava nessa galera. É preciso imobilizar o espectador e deixá-lo de olhos arregalados, com a mão cheia de pipoca parada a meio caminho da boca aberta, durante vários minutos. Todo o cinema de super-heróis, de perseguições e de efeitos especiais é uma hipertrofia dessa tendência. Wilder segurava a atenção da platéia para mostrar e dizer; esses filmes o fazem apenas para mostrar.

Li uma vez um comentário sobre o teatro no tempo de Shakespeare. Teatro naquele tempo era diversão popular, devia ser uma coisa tão barulhenta quanto uma peça de mamulengos numa feira nordestina. Daí que o dramaturgo, para calar o vozerio da platéia, tinha que começar as peças com imagens de impacto, que agarrassem a audiência pela garganta: um fantasma em Hamlet, bruxas em Macbeth, etc. Eram os “efeitos especiais” daquele tempo.

Wilder complementa essa dica dizendo: “Estabeleça uma linha de ação clara para o protagonista do filme, e saiba para onde está indo”. A primeira parte é essencial para capturar o interesse do público, que, em geral, se liga ao que acontece com o personagem Fulano. A segunda parte simplesmente nos lembra que não podemos deixar para improvisar o fim do filme na hora da filmagem. Lembrem-se: não estamos falando em Cinema de Arte, onde o artista faz o que lhe dá na telha e arca com as consequências. Estamos falando de Billy Wilder, cinema comercial inteligente, de boa qualidade, capaz de nos divertir e de mexer com camadas misteriosas da nossa mente.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

2762) A vida é linda (10.1.2012)




Eu fazia de tudo para deixar Florisbela feliz. Quando ela pedia para ir à noite no restaurante tal, eu dava uma geral no menu, à distância, e fazia com que preparassem alguns dos pratos preferidos dela (mas não tantos que a fizessem sofrer com indecisões). A coisa mais linda do mundo era vê-la arregalar os olhos azuis diante do cardápio e exclamar, deliciada: “Peixe ao molho de maracujá! Adoro isso!”. Sem falar nos sinais de trânsito, que eu sempre preferia ir abrindo de um em um, na hora, improviso total, maior jazz sem perder o compasso, enquanto ela murmurava: “Você dirige tão concentrado...”

Nada me dava mais prazer do que dar prazer a Florisbela, e para felicidade minha ela era uma menina de coração puro, por isso nunca tive de manipular as tômbolas da Mega Sena ou coisa equivalente; Florisbela desprezava os novos-ricos. Sua alegria era a das pequenas coisas, por isso eu conseguia presenteá-la com um arco-íris numa tarde sem chuva ou flores que brotavam nas alamedas do parque enquanto caminhávamos (e desapareciam para sempre quando íamos embora). Ir ao cinema com ela exigia de mim performances caprichadas, verdadeiras acrobacias mentais, como quando vimos Em Algum Lugar do Passado e ela foi a única pessoa no cinema a receber em suas retinas os dez minutos de um final feliz. (O pior é que depois era preciso monitorar as conversas dela com as amigas, que tinham visto a versão oficial do filme e achavam Florisbela meio desorientada.)

Beijava meu rosto e dizia: “Me sinto tão bem contigo, visse?...”, enquanto eu guiava pela cidade, meio à toa, ao volante de um carro sem uma gota de gasolina, evitando parar num posto para não quebrar o encanto das canções dos Beatles que estávamos escutando juntos (num pendraive vazio). Cada momento nosso era mágico e especial. Num domingo em que acordamos preguiçosamente, com alguns compromissos meio chatos, bastou perceber a languidez do seu olhar para produzir uma chuva que durou o dia inteiro, fazendo com que nos enroscássemos sem compromisso até a hora em que ela disse: “Vamos comer uma pizza?”, e a chuva parou como por milagre.

Os parcos conhecimentos astronômicos de Florisbela nunca lhe permitiram desconfiar do fato de que em todos os seus aniversários ela era presenteada com uma lua cheia espetacular. Isto me fez perder o senso de medida. Uma noite, quando passeávamos de mãos dadas à margem do Açude Velho, produzi uma aurora boreal que a deixou maravilhada, à beira das lágrimas. Mas de súbito ela teve um sobressalto, olhou desconfiada para mim e disse: “Peraí... Aurora boreal na Paraíba?!!!”. Aí pronto, desse dia em diante nada mais deu certo.

domingo, 8 de janeiro de 2012

2761) Prezado Eu (8.1.2012)



“Prezado Eu: Estou escrevendo do ano de 2010, quando atingi a idade totalmente ridícula de 62 anos, e venho lhe dar um pequeno conselho, em apenas cinco palavras: fique longe das drogas recreativas. Você tem muito talento e vai fazer muita gente feliz com suas histórias, mas (é triste, mas é verdade) você também é um viciado pronto para entrar em ação. Se você não der atenção a esta carta e mudar seu futuro, pelo menos dez anos da sua vida, entre os 30 e os 40 anos, vão ser uma espécie de eclipse tenebroso em que você vai decepcionar uma porção de gente e deixar de aproveitar seu próprio sucesso. Vai também chegar bem perto da morte, em várias ocasiões. Faça um favor a você mesmo e desfrute de um mundo mais luminoso e mais produtivo. Lembre que, assim como o amor, a resistência à tentação torna o nosso coração mais forte. Fique limpo. Tudo de bom, Stephen King”.

Esta é uma das cartas que The Guardian encomendou a pessoas como Gene Hackman, Alice Cooper, James Belushi, Gillian Anderson, etc., com o mote: “Escreva uma carta para você mesmo aos 16 anos, dando-lhe o recado que achar mais importante (http://bit.ly/p0bFox)”. Todos nós sabemos que é impossível mudar o passado, e que se pudéssemos mudar o que fizemos aos 16 anos não chegaríamos ao ponto de, adultos, poder voltar no tempo para fazer essa mudança. É a viagem impossível, um paradoxo temporal que tem a sedução hipnótica das ilusões de ótica, das pinturas “trompe l’oeil” e das gravuras de Escher em que duas imagens incompatíveis parecem coexistir.

Stephen King é um dos escritores mais bem sucedidos, comercialmente, mas sempre teve problemas com a bebida (e outras drogas). Já vi uma entrevista em que ele declarava guardar apenas uma vaga lembrança de ter escrito o romance Cujo (1981), porque nessa época não fazia outra coisa senão se embebedar. Sua obra retoma de maneira obsessiva e mesmo cansativo esse tema: um escritor bêbado em conflito com a família (talvez O Iluminado seja o melhor livro dele sobre esse tema).

Entre os outros convidados, Hugh Jackman (“Wolverine”) aconselha seu Eu jovem a usar sempre protetor solar, e a manter uma lista das 5 coisas que gosta de fazer e das 5 coisas que sabe fazer bem, e avisa: “Um dia tudo isto vai se encaixar, e você vai descobrir seu caminho”. Esses conselhos fictícios são uma breve dramatização do balanço retrospectivo que todos nós fazemos de vez em quando para saber o que funcionou e o que não deu certo em nossas vidas. O “Eu” com 16 anos cometerá os mesmos erros e fará as mesmas descobertas; mas somente nós somos capazes de, agora, distinguir o que foi descoberta e o que foi erro.

sábado, 7 de janeiro de 2012

2760) Modos de dizer (7.1.2012)




Jorge Luís Borges disse que os séculos dão polimento às frases, assim como a água dá polimento aos seixos. Esse polimento, contudo, tanto embeleza quanto deturpa. Tem frases que com o tempo vão ficando mais erradas, vão se deteriorando, seja em termos de sonoridade, seja em sentido.

Antigamente tínhamos uma expressão para dizer que não estávamos dando importância a alguma coisa: “Estou me lixando para isso”. Não sei de onde veio esse “me lixando”, mas visualizo a cena de uma pessoa lixando as unhas e dizendo: “Não tenho tempo para me importar com isso, estou fazendo algo mais interessante: lixando as unhas”. Algo assim. 

E havia outra expressão equivalente: “Eu pouco estou ligando para isso”, a qual não precisa de explicação. Ora, de algumas décadas pra cá a TV está cheia de mocinhas louras sacudindo a cabeleira prum lado e dizendo: “Ah, não ligo, eu pouco estou me lixando para isso”. Dirão o mesmo, é claro, deste meu comentário.

Essa deturpação pela junção de contrários é estruturalmente equivalente à de uma cena que foi uma grande gozação no YouTube tempos atrás. O show de uma banda adolescente foi cancelado, houve empurra-empurra, garotos e garotas protestando histéricos, e uma adolescente chorando e dizendo pra câmara: “Gente, isso é uma grande falta de sacanagem!”.

Às vezes as modificações não alteram o sentido mas contaminam a forma da frase, de modo irremediável. Antigamente, quando queríamos dizer a alguém que perdesse as esperanças quanto a alguma coisa, dizíamos: “Tire o cavalo da chuva, Fulana não quer mais namorar com você”. (Acho que a origem da frase foi numa noite tempestuosa; uma pessoa que queria prosseguir viagem, e o dono da hospedaria disse: “Monsieur, tire o cavalo da chuva e guarde-o no estábulo, não convém pegar a estrada numa noite como esta”.) 

Em todo caso, por motivos insondáveis a frase hoje se cristalizou em “Pode ir tirando o cavalinho da chuva”, a tal ponto que quando digo a forma original sempre aparece alguém para me corrigir. Frases assim viram uma espécie de fórmula mágica, que toda vez tem que ser dita escrupulosamente da mesma maneira.

E até em setores mais eruditos aparecem contaminações assim. Todo mundo conhece a frase de Hamlet: “Existem mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa vã filosofia”. A frase é uma beleza, mas até hoje ninguém me explicou quem é o responsável por esse adjetivo “vã”. Ele não aparece no texto original, mas se infiltrou de modo tão sorrateiro que quando digo a frase correta alguém corrige: “Não é ‘a nossa filosofia’, é a ‘nossa vã filosofia’...” E o autor das peças de Shakespeare dá a milionésima volta no túmulo.






sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

2759) “Bonita Maria do Capitão” (6.1.2012)



O centenário de nascimento de Maria Bonita, mulher de Lampião, motivou o lançamento de um livro que celebra sua vida e seu mito, realizado por Vera Ferreira (neta do casal) e Germana Gonçalves de Araújo. É um álbum de luxo (Editora da Universidade do Estado da Bahia, www.uneb.br), com excelente produção gráfica e uma abundância de fotos e de documentos de época, na primeira parte, e na segunda um apanhado do reflexo da figura de Maria Bonita na cultura brasileira em geral. Eu contribuí com uma pequena crônica. Há poemas de Jessier Quirino, Ângelo Rafael, Myriam Fraga e outros. O pesquisador cearense Nirez contribui com um artigo sobre as canções da MPB que mencionam Maria Bonita. Laura Bezerra estuda as imagens de Maria no cinema, Jeová Franklin a sua presença na xilogravura, através do cordel, e André Betonassi estuda as histórias em quadrinhos que a têm como personagem.

Dentro da sempre crescente bibliografia sobre o cangaço, acho que são poucos os livros sobre Maria Bonita. A figura central de Lampião domina esses estudos, e de qualquer maneira a maior parte deles tem um viés histórico e sociológico que os faz ter que abordar o cangaço como um todo, e não pessoas específicas. Entende-se a inesgotável atração da figura de Lampião, seja como herói ou como bandido, como justiceiro social ou como criminoso sádico, como estrategista ou como marqueteiro de si próprio. A polêmica extremada que cerca Virgolino nasce de sua própria personalidade, contraditória como a de qualquer indivíduo de valor projetado numa situação-limite dentro de um ambiente sem lei. Nessas circunstâncias, é de se esperar que um sujeito seja generoso de manhã e brutal no fim da tarde; protetor de uns e algoz de outros. É de se esperar que deixe atrás de si um rastro de ódios e de gratidões.

Maria é um personagem fascinante porque não tem nenhuma dessas facetas de Virgolino. Não conheço histórias de nenhuma violência praticada pessoalmente por ela, a não ser a participação nos combates (minha impressão é confirmada no artigo de Sérgio Augusto de Souza Dantas). Não sei se era estrategista ou diplomata no meio da intrincada rede de negociações políticas e militares da guerrilha sertaneja. Para todos nós, é a figura aventureira da mulher que abandonou a tranquilidade de uma vida doméstica pela vida selvagem na caatinga, onde a única certeza era a morte no final. Este livro se encerra com a presença de Bonita (e do cangaço) na moda. Isto, de certo modo, chancela o último estágio da transformação de uma pessoa em imagem, cada vez mais diferente de si própria e mais parecida com o próprio mito.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

2758) O quarto vazio (5.1.2012)




("Empty Room", de Mojca Savicki)

As oficinas literárias popularizaram um conceito chamado “Síndrome do Quarto Vazio”. É o diagnóstico de milhares de contos apresentados nessas oficinas que começam mostrando isto: um personagem sozinho, dentro de um quarto vazio (ou com o mobiliário reduzido ao mínimo), muitas vezes com amnésia, sem lembrar quem é ou o que está fazendo ali. 

É exatamente a condição do escritor sem idéias que, para cumprir uma tarefa designada pelo professor precisa escrever um conto, e não tem assunto. Ele começa do zero mental, que, literariamente, se exprime pela imagem do quarto vazio.

Essa situação pode ser estendida para os milhares de livros e contos que chegam a ser de fato publicados pelas editoras e expostos nos balcões das livrarias. A gente pega, folheia, e constata que o livro fala daquilo: um personagem sozinho, num ambiente que quase não é mostrado, sem passado, sem futuro, debatendo-se em suas dúvidas íntimas (ou coisa equivalente). 

Por incrível que pareça, dezenas de livros assim são publicados por ano. Uma quantidade tão grande que não admira que de vez em quando um deles seja bom e possa ser lido até o fim. Mas, amigos, fazer um livro bom com esse tipo de situação é mais difícil do que fazer um livro bom sobre um assunto de verdade. Um cara sozinho num quarto? Sempre tem um escritor que consegue tirar algum leite dessa pedra, mas 999 dão com a cara na porta.

Samuel Delany, num dos seus manuais de escrita, observa: 

“Quanto menos interesse o autor ou os seus personagens tenham pelos seus empregos, rendas, famílias, classe social, locatários, amigos, vizinhos e paisagens (ou seja, tudo que os conecta com o mundo material à sua volta), menos ele terá sobre o que escrever”. 

Em geral, o escritor que gosta de escrever sobre quartos vazios é um sujeito insatisfeito com a própria vida, com a própria família, o próprio emprego, a casa onde mora, a cidade onde vive. Ele não quer escrever sobre aquilo, pelo contrário. Quer fugir daquilo como o diabo da cruz. Quer esquecer esse enredamento social e humano a que todos nós estamos sujeitos, e não tem paciência (ou criatividade) para imaginar uma situação totalmente diferente. Melhor pensar num personagem amnésico, dentro de um quarto vazio, remoendo suas elucubrações íntimas ao longo de 150 páginas.

A literatura fantástica e a ficção científica são muitas vezes acusadas de serem fugas à realidade, quando na verdade a grande maioria dos textos fantásticos se esmera em produzir uma realidade humana e social suficientemente densa para receber o choque do fantástico. 

Quem quer fugir da realidade não inventa outro planeta: tranca-se num quarto vazio.






quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

2757) A morte nos separe (4.1.2012)




O conto “Death do us part” de Robert Silverberg (1997) se abre com um vertiginoso parágrafo futurista descrevendo o casamento entre os protagonistas:

“Era o primeiro dela, e o sétimo dele. Ela tinha 32 anos, e ele 363; aquela antiga relação entre a primavera e o outono da vida. Passaram a lua-de-mel em Veneza, em Nairobi, na Cúpula do Prazer da Malásia, e depois num daqueles sofisticados ‘resorts’ L-5: uma reluzente esfera transparente com sol artificial num ciclo de 24 horas e cachoeiras que se despejavam como cascatas de diamantes. E depois partiram para a bela casa aérea dele, suspensa em cabos retesados mil metros acima do Pacífico, para começarem ali a parte cotidiana de sua vida em comum”.

Marilisa e Leo são um casal típico da elite desse mundo futuro; ele é um artista cinético, internacionalmente famoso. Seu trabalho é criar painéis animados feitos com areia colorida e cristais, que mudam de imagens e de cores de acordo com variações do terreno, de tal modo que a cada duas horas estão exibindo imagens totalmente diferentes. Essa elite do futuro se submete periodicamente a um tratamento que eles chamam “o Processo”, que os mantém eternamente jovens. A certa altura do casamento Marilisa começa a perceber que há algo de errado, e descobre por fim que Leo casou com ela por piedade. Ela é uma das raras pessoas em quem o “processo” não funciona, e está condenada a envelhecer e morrer como as pessoas de antigamente (=nós).

Millôr Fernandes afirmou uma vez: “Injustiça social pra valer era se umas pessoas morressem e outras não”. É esse o mundo descrito por Silverberg, e que não é totalmente impossível de acontecer. Se não nos termos propostos pelo autor (que afinal são mera imaginação), mas dentro de possibilidades técnicas que já se desenham hoje. Não é impossível que algumas pessoas nascidas hoje, em 2011, possam um dia atingir os 100 anos sem muita deterioração física e mental.

Só que isso não vai acontecer para todos, e sim para os muitos ricos. O conto de Silverberg é, na superfície, o contraste entre os que vivem muito e os que vivem pouco (com uma leve alusão ao final de Blade Runner, em que Rick Deckard nos lembra que os humanos, tal como os andróides, podem morrer a qualquer instante). Os cenários vertiginosos descritos nesse parágrafo inicial parecem, no conto, uma metáfora das inimagináveis riquezas que o Tempo reserva aos que não morrem; mas esse próprio “não morrer” é uma metáfora de ter muito dinheiro, ser muito poderoso. Ser imortal é uma metáfora para ser rico. Estar condenado a morrer um dia é estar condenado a viver como nós: uma casinha, um carrinho, um emprego, uma família...

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

2756) A palavra mangar (3.1.2012)




“Mangar” é uma dessas palavras que, lá pelo Rio e São Paulo, denunciam de cara um nordestino. Me lembro de uma vez em que um grupo de amigos fazia gozação com meu vocabulário e eu disse: “Eu falo igual a vocês todos, não vejo motivo pra ficarem mangando de mim”. Foi o que bastou! 

Diferentemente de muitos outros termos do nordestinense, lá fora as pessoas em geral entendem o que a palavra quer dizer, e conseguem usá-la com propriedade. O ponto onde a coisa trava é a regência verbal. Nós dizemos “mangar de”: “Todo mundo mangou de mim porque eu abotoei errado a camisa e não reparei”. Pessoas não-nordestinas usam a-três-por-dois a regência “mangar com”: “Não sei por que vocês estão mangando comigo”.

Isto parece que vem de longa data, como se pode ver neste exemplo colhido meio ao acaso: “...parecia crer que, oculto em algum lugar, Deus também o ouvisse e mangasse com ele, de lá do forro do céu, mando modo: -- ‘Você pecou de bobo, Chefe! Foi trabalhar, de bobo, só...’” (Guimarães Rosa, “Buriti”).

Por que será? Talvez porque quando uma pessoa de fora entende o significado de “mangar”, os primeiros sinônimos que lhe ocorrem sejam “fazer gozação, sacanear, tirar onda, zoar, etc.”. E a regência de todos eles usa a preposição “com”: “Você está fazendo gozação comigo, a gente estava tirando onda com a cara da professora, a galera começou a zoar com Fulano, etc.”.

E estas duas formas se alternam no ouvido dos sudestinos, inclusive dentro da fala e da escrita de um mesmo autor.

 Em sua peça Nova Viagem à Lua (1877), onde mistura personagens urbanos e caipiras, Artur Azevedo faz um personagem dizer (ato 3, cena 6):

“Que vestimenta é esta? Eu não sou sordado! Quem me vestiu assim? Mangarum comigo!”.

Já na cena 12 do mesmo ato, o personagem Arruda diz ao filho: “Venha cá, seu rei da Lua, então ‘vacê’ mangou de seu pai...”

Isto certamente se deve ao fato de que o teatrólogo conhecia a palavra através de diferentes pessoas, que usavam tanto a regência correta quanto a errada. E na hora de escrever, “ao correr da pena”, como se dizia na época, vinha-lhe ora uma ora outra expressão, sem que ele percebesse.

A melhor maneira de consertar esse pequeno erro é explicar às pessoas de fora que “mangar” significa “zombar” – um verbo que pede a mesma regência, usando a preposição “de”: “A gente ontem estava mangando da torcida deles, mas agora são eles que estão zombando da gente”. 

Diferentemente dos outros sinônimos acima, são verbos totalmente intercambiáveis, que têm o mesmo sentido e pedem a mesma preposição. Portanto, vamos definir mangar como zombar, e parar de fazer as duas coisas com nossos compatriotas.