sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

2752) “Fogo Pálido” (29.12.2011)



É um dos livros mais surpreendentes de Vladimir Nabokov, este especialista em surpresas. E serve como ótima ilustração para a minha teoria sobre a formação dos gêneros literários, ou seja, que eles se estruturam a partir de um texto básico, o qual passa a ser imitado, gerando um número tão grande de variantes que esse conjunto de textos acaba constituindo uma literatura à parte. O exemplo clássico é “Os assassinatos da Rua Morgue” de Edgar Allan Poe (1841), que serviu de modelo para toda a literatura de mistério detetivesco.

Fogo Pálido consta de um longo poema em quatro cantos e as notas explicativas que o acompanham. Acontece que Nabokov atribui o poema a um sujeito imaginário, e as notas a outro. O autor do poema é Shade, um poeta recém falecido; e seu explicador é um tal de Charles Kinbote, que aos poucos vai se revelando ao leitor como um doido de jogar pedra. Seus comentários contam de modo distorcido a vida de Shade, a dele próprio, e mais uma enormidade de coisas que, a rigor, nada têm a ver com o poema que ele alega estar explicando.

Se o livro de Nabokov tivesse sido um sucesso de vendas como foram O Nome da Rosa de Umberto Eco ou o Memorial do Convento de José Saramago (duas outras obras literariamente ambiciosas e admiráveis, que geraram inúmeros imitadores) poderia ter criado um novo gênero, a análise fictícia de textos imaginários. Dezenas e dezenas de romances onde o autor imaginaria tanto a obra quanto a crítica. Um poema alquímico renascentista explicado por um psicanalista freudiano. Um poema recém-descoberto de Castro Alves explicado por um crítico baiano tropicalista. Um poema beatnik de autor desconhecido explicado por uma professora republicana de Boston. Um poema de um simbolista cearense explicado por um brazilianista argentino. Uma coletânea de haikais japoneses explicada por um estruturalista mexicano. E por aí vai. Um gênero inteiro, um enorme nicho de mercado destinado a satisfazer a curiosidade de leitores que gostassem da fórmula e fossem capazes de consumir variações dela até o fim dos tempos, como o fazem com o conto policial de Poe.

Li num artigo sobre Fogo Pálido (http://tinyurl.com/cxhpj7x) que o livro tem seguidores, sim. Arthur Philips escreveu um romance, The Tragedy of Arthur, que tem a forma de introdução a uma peça inédita de Shakespeare, e inclui o texto completo da peça. Este hipotético gênero nabokoviano deve estar se gerando nos desvãos da crítica e do mercado. Dada a mentalidade “mash up” de hoje, adoradora de simulacros e de ficções fictícias, quem duvida que será o gênero da moda daqui a algumas décadas?

2751) O gênio não-original (28.12.2011)




Kenneth Goldsmith, um questionador das práticas literárias, é fundador do saite UbuWeb (www.ubuweb.com), conhecido como “o YouTube da vanguarda”. Eu não diria que é um grande escritor, e é bastante possível que, ganhando de presente um livro dele, nunca o lesse. A maldição da vanguarda é que geralmente seus postulados teóricos são fascinantes e arrojados, mas suas produções artísticas nos deixam entediados ou perplexos. Num artigo recente (http://bit.ly/npT8zj), Goldsmith argumenta que na época da cultura digital o conceito de originalidade artística está sendo substituído pelo de “reorientação” (“repurposing”) das idéias e dos textos. Mais do que produzir páginas originais, cabe ao escritor de hoje administrar um excesso de textos já existente, organizá-lo, distribuí-lo. Diz Goldsmith:

“Nos últimos cinco anos, vimos alguém copiar On the Road de Jack Kerouac por inteiro, uma página por dia, num blog; a apropriação do texto de uma edição do New York Times, publicada sob a forma de um livro de 900 páginas; uma reorganização da lista de lojas num shopping, diagramada em forma de poema; um escritor empobrecido que pegou todos os seus extratos de cartão de crédito e os encadernou num volume impresso por demanda, com 800 páginas, tão caro que ele próprio não conseguiu comprá-lo; um poeta que reorganizou o texto de uma gramática do séc. 19, inclusive o índice, de acordo com seus próprios métodos; um advogado que apresenta como poemas os memorandos do seu trabalho, nem mudar uma palavra sequer; outra escritora que passa os dias na Biblioteca Britânica copiando o primeiro verso do ‘Inferno’ de Dante, em todas as traduções ali existentes, um depois do outro, até esgotar o acervo da biblioteca; outra equipe de escritores que se apropria de posts e status de redes sociais e os atribui a escritores falecidos (“Jonathan Swift conseguiu entradas para o jogo dos Wranglers hoje à noite”), criando uma obra poética épica, interminável, que se reescreve cada vez que alguém atualiza seu Facebook; e um movimento literário chamado Flarf que consiste em recolher os piores resultados de busca do Google, quanto mais ridículos e ofensivos melhor”.

Esses escritores são as formigas-operárias da literatura, cujo trabalho consiste em cortar folha e trazer folha, para produzir a pasta fermentada que alimenta o formigueiro. Não creio, como Goldsmith, que o gênio original deixou de existir, mas acredito que em torno do Escritor tradicional surgem reescritores, descritores, transcritores, meta-escritores... A Literatura está se movendo, e nós, suas pulgas, nos movemos com ela, crentes que ela obedece às nossas vontades.

2750) O leitor fã (27.12.2011)



O fã é um produto típico de certa cultura de massas do nosso tempo, que requer não apenas o envolvimento afetivo com as obras de arte, mas uma dedicação emotiva em tempo integral. O fã é alguém cuja vida tem como centro seu ídolo, que pode ser um jogador de futebol, uma atriz de cinema, uma banda de rock, uma modelo. O leitor fã é o que transfere esse fanatismo (fã vem de “fanático”) para a literatura. O sujeito pode ser fã de um autor (os fãs de Stephen King), de um gênero (policial, ficção científica, etc.), de um personagem (Sherlock Holmes), de uma série de obras de autores variados (“Perry Rhodan”, etc.).

O que caracteriza o leitor fã é que ele se comporta diante do objeto de seu fanatismo como os fãs de Marilyn Monroe ou de Carlos Gardel se comportam diante dos seus ídolos. Qualquer farrapo de informação é importante, qualquer foto saída na imprensa merece ser recortada e pregada no álbum. O leitor fã faz listas de livros que precisa ler, listas de livros já lidos, listas de livros que precisa comprar, listas de livros que precisa perguntar aos amigos se vale a pena comprar. Costuma juntar-se a outros em clubes, onde a única conversa é sobre aqueles livros, e onde os membros debatem livros, comentam livros, trocam livros, compram livros usados uns aos outros.

Essa atividade frenética acaba atraindo o leitor, de forma quase imperceptível, para uma zona fronteiriça e nebulosa que, quando começa a se clarear de novo, revela ao incauto que ele cruzou um limite. Deixou de ser leitor e agora é somente fã. Um leitor é alguém que lê, que decifra palavras, que toma decisões interpretativas sobre cada frase, cada parágrafo, cada bloco de texto. O leitor recria em sua mente o mundo criado pelo livro e é forçado a tomar juízos de valor. O leitor fã, muitas vezes, torna-se fã para evitar essas tomadas de posição. Ele não quer ser inquietado por informações novas, desconcertantes, que ponham em xeque seus instrumentos de interpretação. Ele não quer novas experiências literárias. Quer o aconchego do eterno “um pouco mais daquilo mesmo”. O leitor fã abre mão do esforço de pensar, e lê apenas para lembrar, para refestelar-se no que já conhece.

Por isto o mercado cultua os fãs e alimenta sua obsessão de comprar todas as edições de um livro, todos os livros-de-fofocas sobre um autor, todos os livros de listas de um gênero. É o consumidor ideal, porque não compra mais com a intenção de ler. Quando o leitor fã abre os olhos, vê que não passa de um colecionador de livros que não lerá. Já não se distingue do cara que compra as meias de nylon de Evita Perón ou um travesseiro usado por John Lennon.