sexta-feira, 28 de outubro de 2011

2699) Drummond: “Fuga” (28.10.2011)



(Drummond, na época do lançamento de Alguma Poesia)

Um tema recorrente na obra de Drummond em sua primeira fase (a partir de Alguma Poesia, de 1930) é o da inadequação entre o poeta e o Brasil, a inadequação entre as expectativas imaginárias do poeta e a realidade que o Brasil tinha a oferecer. O livro é claramente a profissão de fé de um convertido, de alguém que provavelmente em certo momento (na adolescência, talvez) viu a si mesmo como um ser ungido pelas Musas, doido pra reproduzir aqui o toma-lá-dá-cá da vida cultural greco-romana (ou parisiense e lisboeta, para ser mais contemporâneo), e percebeu que era na verdade um exilado de nascença num país bárbaro, tropical, de gente que não sabe ler e muito menos apreciar um soneto de boa qualidade. O poeta pode ter sido assim; mas logo foi arrebatado pelo turbilhão modernista, e muitos textos de seu livro de estréia são a constatação meio nostálgica e quase toda irônica do quanto o Brasil é impermeável a essa poesia clássica que não o entende.

E vem o poema “Fuga”, onde o poeta de 28 anos diz: “"As atitudes inefáveis, / os inexprimíveis delíquios, / êxtases, espasmos, beatitudes / não são possíveis no Brasil. // O poeta vai enchendo a mala, / põe camisas, punhos, loções, / um exemplar da Imitação / e parte para outros rumos. // A vaia amarela dos papagaios / rompe o silêncio da despedida. / - Se eu tivesse cinco mil pernas / (diz ele) fugia com todas elas.” A “Imitação” a que se refere é certamente a Imitação de Cristo de Tomás de Kempis, um livro religioso do século XV, muito influente para a geração de Drummond (entre os “meus” autores, Jorge Luís Borges e Malba Tahan o citam de vez em quando).

Esse poeta que Drummond fotografa batendo em retirada rumo à Europa é o poeta que ele próprio imaginou ser, e do qual agora permite-se mangar com a risada libertadora de quem sacudiu de si uma fantasia incômoda. Ele tem bom senso suficiente para ver-se ali. É sabido que Drummond admirava Anatole France, que não escapa de citação: “Povo feio, moreno, bruto, / não respeita meu fraque preto. / Na Europa reina a geometria / e todo mundo anda - como eu - de luto. // Estou de luto por Anatole / France, o de Thaïs, joia soberba. / Não há cocaína, não há morfina / igual a essa divina / papa-fina.”

O poeta se evade para a Europa, ou seja, para o passado: “Vou perder-me nas mil orgias / do pensamento greco-latino. / Museus! estátuas! catedrais! / O Brasil só tem canibais. // Dito isso fechou-se em copas. / Joga-lhe um mico uma banana, / por um tico não vai ao fundo. // Enquanto os bárbaros sem barbas / sob o Cruzeiro do Sul / se entregam perdidamente / sem anatólios nem capitólios / aos deboches americanos.”