quinta-feira, 20 de outubro de 2011

2691) O ouvinte secreto (19.10.2011)




(detalhe do manto do rei Prempeh)

Esta história está contada com detalhes, e belas ilustrações, por David Apatoff, no saite “IllustrationArt” (http://bit.ly/po6IvV). Quando os ingleses derrubaram o império Ashanti, na África, impuseram ao rei derrotado uma série de condições humilhantes. Um dos oficiais ingleses era o coronel Baden-Powell (cujo nome foi herdado pelo violonista brasileiro). Em suas memórias, Powell conta: “Aquilo foi um grande golpe para o orgulho e a auto-estima dos Ashanti. Após a derrota, veio a exigência de pagamento de indenizações pela guerra. O rei Prempeh constatou que poderia dar aos ingleses apenas a vigésima parte do que lhe foi exigido, e recebeu a notícia de que seria levado prisioneiro, junto com sua mãe e seus chefes tribais”. Prempeh entregou-se, foi preso; os soldados ingleses saquearam e incendiaram seu palácio.

Nos últimos dias antes de se entregar, Prempeh mandou bordar um manto de rendição, medindo cerca de 2 metros por 3, coberto com símbolos gráficos ilustrando a cultura e a história do seu povo. O manto foi bordado em quadrados, com ideogramas simbolizando as lendas, provérbios e histórias dos Ashanti. Um padrão de círculos concêntricos, p.ex., simboliza o rei cercado por seus ancestrais, guerreiros e espíritos protetores. Um padrão chamado “pé de galinha” se refere ao provérbio Ashanti “uma galinha caminha sobre os pintinhos mas não os mata”, referindo-se ao rei poderoso que não esmaga seus súditos. Outro padrão em espiral, chamado “chifre de carneiro”, alude ao provérbio “a bravura de um carneiro vem de seu coração, não de seus chifres”.

Os ingleses não entenderam o significado do manto, mas um soldado apossou-se dele após a cerimônia, e levou-o consigo. Ele está hoje no museu da Smithsonian Institution, em Washington. Em seu blog, David Apatoff tenta adivinhar a função que esse manto poderia ter desempenhado, e comenta:

“Por que motivo Prempeh se daria o trabalho de criar uma obra de arte cuja mensagem não seria compreendida? Uma resposta possível é que as pessoas recorrem à arte quando nada mais lhes resta, e quando nossos sentidos não conseguem reproduzir o mundo de uma maneira suportável. O poeta Schlegel disse: ‘Através do ruído da vida – este sonho multicor – nossas canções são cantadas para um ouvinte secreto’. Muitas obras de arte são criadas assim, como uma mensagem numa garrafa, para que um dia possam chegar até esse ouvinte secreto capaz de entender o que nos aconteceu. O império Ashanti, com sua rica tradição, deixou de existir naquele dia, mas o manto de Prempeh serviu para que uma parte daquela cultura sobrevivesse e alguém ficasse sabendo que ela existiu”.




2690) Profissional vs Amador (18.10.2011)



(foto: Yanik Chauvin)

Foi uma dessas semi-gafes em que sou especialista. A gafe é involuntária, é quando a gente paga um mico, mas agindo com a maior inocência. A semi-gafe é quando a gente pensa “se eu fizer isso vai ser uma saia-justa danada”, mas faz assim mesmo. Faz uns quinze anos, eu estava em São Paulo numa reunião cultural qualquer. Um cara colocou na minha mão uma revista enorme, em papel cuchê, a cores, com uma programação gráfica de cair o queixo, e disse: “É o número 1 da revista que estamos lançando, tem os melhores fotógrafos, os melhores ensaístas...” Folheei, fiquei de queixo caído; vi no índice os nomes de colaboradores dos mais ilustres, uma galera que abrangia desde catedráticos da USP até poetas independentes do Bexiga. Elogiei, o cara disse: “Pois é, nosso esforço foi para fazer uma revista literária de nível profissional, e acho que conseguimos. Você poderia nos mandar uma colaboração?” Perguntei quanto eles pagavam por um artigo. O rapaz pigarreou, ajeitou o nó da gravata: “Olha, como nós estamos ainda começando, essa questão da remuneração dos colaboradores ficou para mais adiante, quando a revista estiver mais estruturada”. Eu devolvi o exemplar para ele e disse: “Sei como é. Então quando passar essa fase amadora, e começar a fase profissional da revista, quem sabe eu mando uma colaboração”. O cara deu uma risada, um tapinha nas minhas costas e nunca mais falou comigo.

Eu vejo por aí as pessoas usarem os termos “profissional” e “amador” de um modo totalmente inadequado. Para elas, profissional é tudo que é super bem feito, super competente; amador é tudo que é tosco, desajeitado, imaturo. Eu discordo e proponho a seguinte fórmula: profissional é todo trabalho que é pago, e amador é todo trabalho que é feito de graça. Em ambos os casos existem gradações que vão do mais sofisticado ao mais tosco. E nenhum de nós é totalmente profissional ou totalmente amador. Eu mesmo todos os dias me alterno entre trabalhos profissionais (como esta coluna, pela qual recebo um salário) e trabalhos amadores, que não me rendem um tostão, mas que eu faço por amor à arte, ou por amizade, por desfastio, por curiosidade, por qualquer outro motivo que não seja um depósito bancário.

Tem muito trabalho profissional que é labrojeiro – a gente chama um encanador pra ajeitar um vazamento e uma semana depois tem que chamar outro, porque o conserto ficou igual à cara de quem fez. E muitos catedráticos escrevem artigos amadores de alto nível, porque a USP lhes paga um belo dum salário e lhes permite escrever de graça para revistas onde o único profissional é o cara que embolsa os lucros.