quarta-feira, 14 de setembro de 2011

2661) O mundo não me deve nada (14.9.2011)



Morreu nos últimos dias de agosto de 2011 o bluesman David “Honeyboy” Edwards, aos 96, tido como o último sobrevivente da geração dos chamados “Delta Blues Singers”, os músicos do delta do Mississipi que praticamente criaram as raízes do blues que conhecemos hoje. 

Honeyboy teria sido, inclusive, a última pessoa ainda viva entre as que conviveram com o lendário Robert Johnson, cuja bola já enchi bastante, de modo que vamos direto ao mito do momento. 

Há muitos bons livros sobre a música e os músicos do blues; Edwards tem uma autobiografia (The World Don’t Owe Me Nothing, Chicago Review Press, 1997), escrita com o auxílio de jornalistas, em que ele conta de maneira cândida, descritiva, a sua versão da infância que teve, e de como se tornou músico. É um relato em primeira mão que não deve ser descartado, mesmo levando-se em conta que depois que alguém fica velho seu passado fica mais enfeitado do que burra de cigano. Cada ano que passa o ancião inventa uma lembrança nova. 

Não importa. O que me interessa em livros desse tipo não é o dado factual, aquele que faz tremer o medidor do IBGE. Interessa-me a fábula, o sentimento, a verdade humana, à qual tanto se chega pela memória verdadeira quanto pela falsa. 

O livro de Honeyboy tem um título incapaz de ser melhorado: O Mundo Não Me Deve Nada. Isso é de uma nobreza admirável, de um alto-astral espantoso, vindo de um sujeito negro, pobre, cuja vida foi uma gincana de desafios. Mas Honeyboy tira tudo de letra, com um enorme sorriso cheio de dentes de ouro, que em mais de uma foto me lembrou o saudoso Zé Vicente da Paraíba, seu parente cósmico. 

Diz ele: “Eu era jovem, com boa aparência, e tinha a boca cheia de ouro. Mandei botar ouro nos dentes da frente, para chamar a atenção e mostrar estilo.” É o fraco! 

Honeyboy é aquele típico crioulo cheio de chinfra, um malandro do bem. Conta mil histórias dos bastidores do blues: 

“Todo mundo pegava músicas uns dos outros e as modificava. É assim que as canções surgem. Você senta, pega um verso de uma música, um verso de outra. É a única maneira de fazer uma coisa nova! Ou pega dois ou três versos e põe outra melodia”. 

Edwards levava escorpiões secos num saquinho, num bolso, simpatia para dar sorte; pendurava o violão na parede, sobre a cabeceira da cama, mandinga para não esquecer as coisas que aprendera naquele dia. Cresceu, viveu e morreu no caldeirão inesgotável e mutante do blues. Era um músico de rua, da cultura oral que uma dúzia de folcloristas heróicos descobriu e preservou a partir dos anos 1930. 

Ele diz: 

“Eu já devia estar morto há mais de cinquenta anos, mas Deus ainda não estava pronto para me receber”.