domingo, 28 de agosto de 2011

2647) O insulto ao feiticeiro (28.8.2011)




(Samuel van Hoogstraten, Homem na Janela)

Argote de Molina é uma rua tortuosa que ziguezagueia em ângulos obtusos, conduzindo às proximidades da Torre da Giralda, em Sevilha. Há duzentos anos, quem passasse por ali sem muita pressa poderia avistar, ora agachado num portal, ora sentado à sombra de uma coluna, ora cambaleando sobre as pedras enlameadas, um homem encarquilhado de barbas brancas e sujas, amparado num ramo de árvore desbastado a faca. Seu nome era Agustín de Zayas, chamado de “Gustín” pelos peixeiros e padeiros que o alimentavam de esmolas.

Gustín foi soldado da guarda de Don León Lanure, fidalgo de Salamanca que para ali se transferiu a mando do rei. Diz-se que o encontro entre Gustín e o feiticeiro Zamora foi breve, à saída de uma taverna. Um esbarrão, uma troca de insultos, e Gustín, mais jovem, mais impetuoso, mandou que segurassem aquele homem gordinho e desajeitado e chicoteou-lhe o rosto várias vezes. O outro fugiu sangrando, balbuciando maldições. O taverneiro comentou, sombrio: “Não devia ter feito isso, senhor. Esse homem tem parte com as energias do Mal, e todos o temem”.

Gustín cuspiu na sarjeta o seu desprezo, mas desde então sua vida desandou. Surgiram feridas em seu corpo. Don León foi enforcado por conspirar contra o rei, e Gustín cumpriu dois anos de masmorra, onde as doenças e os maltratos o envelheceram vinte. A esposa o abandonou por um comcerciante rico e foi viver na França. Ao ser libertado, Gustín tornou-se mercenário a soldo de quem pagasse melhor; perdeu um olho e todos os dentes em combate. Passou a procurar Zamora por toda a Andaluzia. “Para quê?”, perguntavam-lhe. E ele: “Para chicoteá-lo até que desmanche seu feitiço”. Sua casa incendiou-se. Seu sono era incomodado por pesadelos, e rara era a noite em que não acordava gritando. Deixou de ser alistado nas tropas, porque dizia-se que dava azar.

Soube que Zamora estava morando na Provença, e partiu para lá. Já vestia somente andrajos, e a única coisa de valor que conduzia era o punhal com que pretendia degolar o bruxo. Sem conseguir falar a língua local, acostumou-se a viver de esmolas, e retornou anos depois a Sevilha, onde viveu da caridade de seus ex-companheiros. Ao receber um prato de comida, murmurava: “Deus te pague agora, e te pagarei em dobro quando ficar bom”. Quando alguém o reconhecia e lhe dirigia a palavra, dizia: “Estou coberto por um feitiço, mas quando encontrar Zamora ele me pedirá perdão e voltarei a ser quem sou”. Os anos se passaram. Falou-se que Zamora morrera de febre numa viagem a Constantinopla, mas Gustín recusou-se a crer. Aprendeu a ler com os padres da Catedral. Em cada livro da Bíblia lia sua própria história e julgava ver recados enviados pelo bruxo. No fim, quando lhe dirigiam a palavra, dizia: “Estou à procura do bruxo Zamora, se ainda vive, para pedir-lhe perdão”. Talvez o perdão tivesse sido concedido, porque os cães já não disputavam sua refeição, e as moscas não perturbaram sua última noite de insônia.