quarta-feira, 24 de agosto de 2011

2643) Meus gols de placa (24.8.2011)





(detalhe de foto de Gustavo Moura)

A convivência de uma vida inteira com o mundo do futebol (e a prática intensa de uma versão informal deste esporte, a famosa “pelada”, entre os 11 e os 16 anos) desenvolveu em mim o senso estético do jogo e o talento planejador. Sou autor de uma porção de gols de placa que nas horas vagas me deleito em repassar na memória. (Se bem que “memória” é um termo dúbio para designar algo que, mesmo tendo acontecido milhares de vezes, só aconteceu no meu modesto “teatro mental”).

Um dos meus favoritos é um gol em que estou na posição de centroavante, próximo à meia-lua da área e de costas para o gol. O zagueiro me acossa por trás, impedindo minha movimentação, e meu time vem em contra-ataque veloz. O armador lança a bola na minha direção. Quando ela chega aos meus pés, viro o corpo para a direita como se fosse rodear o zagueiro por aquele lado; e ao mesmo tempo desvio a bola para a esquerda, tirando-a do alcance dele. O zagueiro hesita, bloqueado por essa mensagem contraditória, sem saber se barra minha passagem por um lado ou se intercepta a bola pelo outro. É tudo que preciso para rodeá-lo por completo, apanhar a bola que o rodeou pelo lado oposto, romper de área adentro, e desviá-la do goleiro até o fundo das redes.

Gostaram? Tem mais. Tem um em que estou de frente para o gol, fora da área, e a bola vem quicando na minha direção. Quando o zagueiro fecha sobre mim, ao invés de tentar receber a bola com o pé eu a faço repicar novamente no chão, batendo e subindo; o corte dele passa direto, e quando a bola desce eu puxo para o lado limpando o lance e mando um petardo no ângulo, indefensável.

Outro dos que mais gosto é um em que estou dentro da pequena área, numa daquelas confusões pós-escanteio, de costas para o gol. O goleiro está às minhas costas, quase embaixo do travessão, e um atacante do meu time chuta rasteiro, na minha direção. Quando a bola vem chegando abro as pernas como que para deixá-la passar, mas no instante em que ela passa eu uso a face interna de um dos pés para dar um levíssimo toque, o bastante para 1) desviar a trajetória da bola, e 2) garantir que o nome que vai para a súmula é o meu.

Não multiplicarei exemplos. Hora de teorizar um pouco. Grande parte dos planos-para-o-futuro que a gente faz está no mesmo limbo espiritual destes meus gols, tão caprichados. Antes de chegar na primeira ponte a gente está ensaiando como atravessar a décima. Estou com uma porção de golaços prontinhos, e ninguém me chama para entrar em campo! Gols roteirizados, sextilhas decoradas, piadas prontas, trocadilhos relâmpago... de nada adianta atulhar a memória com essas coisas se não mergulharmos no “Agora Bora Ver” do jogo, da cantoria, da vida real enfim. Algo me sussurra que meus golzinhos platônicos nunca serão registrados por nenhum garoto do placar, assim como nunca proferirei diante de uma platéia meu discurso de aceitação do Prêmio Nobel, que modéstia à parte ficou uma beleza.