sábado, 2 de julho de 2011

2598) A hora do pesadelo (2.7.2011)




O pesadelo é uma experiência pré-verbal de tal intensidade que traduzi-la verbalmente se transforma num desafio para um escritor. 

Digo pré-verbal porque a experiência do pesadelo (pelo menos minha experiência pessoal, parcialmente confirmada por depoimentos de outras pessoas) é algo que ocorre em 360 graus na nossa mente, envolvendo-a por completo. 

Sonhar parece um pouco com estar mergulhado numa atividade intensa e rápida, como um acidente, uma briga, um assalto. Agimos e reagimos por reflexo, em fração de segundo, sem verbalização prévia ou simultânea. Quando depois precisamos verbalizar a experiência, há tanta coisa para ser lembrada que é difícil saber por onde começar.

Um ensaio de Robert Louis Stevenson, “Um capítulo sobre o sonho”, fala sobre a dissociação psíquica que a criação onírica envolve. 

Ele conta ter sonhado uma história, com personagens, enredo, envolta num mistério que se dissipa quando uma personagem faz uma confissão ao protagonista. E Stevenson “ouviu” aquilo com absoluta estupefação, pois era a última coisa que poderia imaginar ouvir daquela pessoa. Sua surpresa foi tão grande que ele acordou, sobressaltado. 

E no entanto (observa Stevenson) a história tinha sido criada por ele mesmo. Como pôde manter o segredo? Como pôde provocar tamanha surpresa, se a mente que inventara a história e a mente que a contemplava em sonho eram uma só?

Tenho o hábito de anotar alguns sonhos, sejam pesadelos ou não. Claro que não anoto todos, mas costumo registrar, quando posso, aqueles que me deixam uma impressão mais vívida. 

Minha sensação é de que, quando sonho, sonho com minha mente inteira, diferentemente do que acontece quando estou escrevendo em estado lúcido, quando quem comanda a escrita é uma fatiazinha do cérebro hipoteticamente situada na parte frontal. Chamo a isto “escrever com a consciência verbal”, pois estou tirando a história de minha própria consciência, palavra por palavra. 

Já quando estou anotando um sonho, não. É como se o cérebro inteiro tivesse participado da criação daqueles episódios e é impossível escrever tudo, porque a massa de sensações, impressões visuais, nuances emotivas, etc., é tão grande que eu precisaria de dezenas de páginas para registrar tudo, se fosse possível transformar aquilo tudo em palavras.

E esse é outro aspecto curioso do sonho. O relato do sonho não o reproduz. O sonho não é feito de palavras. É feito de uma massa esférica e pesada de sensações, e a relação que o relato verbal do sonho tem com aquilo é tão distante e tênue quanto a relação entre a palavra “elefante” e um elefante de verdade. 

Daí, talvez, que o sonho se preste tanto à criação literária, porque é e será sempre irredutível às palavras, deixando-as com uma aura mágica (pois ao ler aquilo eu evoco o que sonhei) mas ao mesmo tempo com uma dimensão utilitária, banal: posso fazer o que quiser com aquelas palavras, porque aquelas palavras não são o que eu sonhei.