quinta-feira, 9 de junho de 2011

2578) O Mauzão e o Bonzinho (9.6.2011)



Emparelharam com sirene, luzes piscando, fizeram sinal pra encostar no meio-fio. Obedeci, puxei o freio de mão e fiquei por ali. Veio um por um lado e o outro pelo outro. “Desce”, disse o primeiro, que tinha um bigode preto que parecia um rôdo. “Boa noite”, disse eu, bem alto, mesmo a rua estando sem um pé de pessoa às três da madrugada. O bigodudo abriu minha porta com força, me puxou pela gola da camisa, quase rasgando, e no mesmo movimento me fez dar uma volta e bater com o peito na lateral do carro. “Êpa”, falei, “vamos com calma”. “Cala a boca, seu porra”, disse ele, me apertando contra o carro com a mão esquerda. Foi arrancando tudo dos meus bolsos com a outra mão e jogando em cima do teto do carro. Enquanto isso o outro deu a volta e perguntou, como se a gente estivesse num domingo de sol assistindo uma regata: “E aí, tudo em ordem?”. Esse era louro e usava óculos. Era o Bonzinho. O Mauzão botou um cotovelo pontudo na minha espinha, me apertando, enquanto manuseava meus documentos, habilitação, carteira, sei lá o que ele estava olhando. “Pode trazer o bafômetro”, falei, só para dizer alguma coisa. Ele deu uma pancada na minha coluna com uma baioneta do exército alemão, ou talvez fosse somente o cotovelo. O Bonzinho perguntou: “Por que não parou quando a gente deu sinal?” Sem me mexer, respirei fundo e disse: “Acho que não vi. Tava ouvindo música”. O Mauzão remexeu nas coisas em cima do carro, talvez procurando um papelote ou um baseado. Só ia achar alguma coisa ali se plantasse. O Bonzinho afastou pro lado o Mauzão (que estava olhando cada compartimento da minha carteira) e disse baixinho: “Fica tranquilo, ele é meio agressivo mesmo, mas eu te garanto”. Foi a gota dágua. Virei-me para ele (o outro logo ergueu os olhos ao me ouvir) e disparei: “Olha aqui, seus palhaços, cretinos, borrabotas, seus milicos melados-de-óleo, seus personagenzinhos de telenovela inframental, de filmeco policialesco sub-hollywoodiano... Tou cansado dessa clicheria ambulante, dessa catatonia formulaica de repetir o repetido e dissolver em entropia o eternamente recodificado!” Peguei um e outro pela gola, trinta socos cá, trinta pontapés lá, dei no Zé uma surra com o João e depois dei no João uma surra com o Zé, joguei no asfalto, pisei, sapateei, enrolei um no outro e malhei o asfalto como quem malha sisal. Bati tanto que quando parei para respirar a transformação estava feita, a fusão concluída, arre diabo, será que tudo na vida tem que dar tanto trabalho? Ele se levantou meio tonto, limpando o uniforme. Perguntei: “Tudo bem?” “Tudo, senhor” disse ele, “tive uma tontura... Aqui estão seus papéis”. Olhei-o: óculos, bigode louro parecendo um rôdo... Guardei os papéis. Ele ainda me deu uma lição de moral e de velocidade no trânsito. Ao me afastar, vi que ele se abaixava e se olhava no retrovisor da viatura, como alguém que escapou de um perigo e acabou de nascer de novo.