quarta-feira, 8 de junho de 2011

2577) O Império da Verdade (8.6.2011)




É uma dessas encruzilhadas ético-afetivas que tantas vezes nos fazem sofrer. Lembrei do fato ao arrumar uns CDs antigos, empilhados num canto do meu escritório há tanto tempo que seria melhor considerá-los um sambaqui musical. 

Anos atrás recebi uma mala-direta de gravadora. (Tá vendo? O fato é tão antigo que ainda havia gravadoras mandando mala-direta pra gente.) Falava do lançamento do CD de uma cantora jovem, transcrevia elogios da imprensa, e num deles (assinado por um jornalista respeitado) fornecia o link para a matéria completa. Além de respeitado o cara era meu amigo, e morava numa capital brasileira cujo nome é irrelevante para o caso.

Fui no link. A crítica procurava ser comedida mas era tão otimista quanto ao futuro da cantora que na primeira chance que tive consegui o CD e escutei. Surpresa, rosto em branco. Era bem fraquinho o disco; o verso mais original dizia algo como “sem você não sei viver”, e a menina tinha até uma boa voz, mas vacilante, travada... Nada muito comprometedor, mas nem um pouco entusiasmante.

Algum tempo depois um trabalho me levou àquela cidade e o Roteirista do Mundo me colocou numa mesa de restaurante com meia dúzia de conhecidos, entre eles o jornalista em questão. A certa altura lembrei do CD e comentei que ele tinha exagerado na dose de elogios. A tal cantora era meio chinfrim. Ele passou a mão pelo cabelo grisalho e disse: 

- É, rapaz, já me falaram isso... Mas é minha filha. Gravou o primeiro disco, uma batalha danada, a menina ainda está meio verde, mas pode melhorar. O disco é ruim, mas você queria o quê, que eu dissesse a verdade?

Corolário: existem verdades factuais (coisas concretas que aconteceram e que podem ser comprovadas por testemunhas independentes), verdades intelectuais (coisas que, argumentadas, fazem sentido, mas existem apenas no plano das idéias e não podem ter comprovação material, nem precisam) e verdades afetivas, as mais difíceis de definir, mas que exercem talvez a maior pressão sobre as decisões que tomamos.

Qual o mais importante, a credibilidade do jornalista ou a solidariedade do pai? Ser fiel a um juízo crítico, ou dar uma força pra menina? Como equilibrar as duas coisas? O simples fato de equilibrar as duas coisas não relativiza a verdade, que deveria ser um valor absoluto, não condicionado por valores de outra ordem? Pedimos umas três saideiras enquanto tentávamos deslindar este complicado nó filosófico. 

É a velha questão que se coloca o tempo inteiro na tomada de decisões da vida profissional. Devo obedecer a critérios técnicos ou a critérios políticos? Devo ser objetivo, sincero e imparcial, ou devo ver o lado humano latente em cada questão, e usar mais a bondade que a verdade, mais o afeto do que o intelecto? 

Despedimo-nos sem encontrar a resposta, mas ao apertarmos as mãos ele me confidenciou que a filha estava agora estudando Jornalismo. “Leva jeito?”, perguntei. Ele riu e disse: “Puxou ao pai”.