domingo, 5 de junho de 2011

2575) O taxidermista (5.6.2011)



(foto: urban75)

Passava das duas da manhã e caía uma chuva fina quando o táxi dobrou a esquina e veio devagar ao longo da calçada. Diminuiu ao se aproximar de um edifício, antigo, com grades em forma de alabardas pontudas. Um homem emergiu do portal, acenando. Bateu o portão atrás de si e entrou no banco traseiro. “Sr. Ribeiro?” perguntou o motorista. “Isso mesmo. Boa noite.” “Boa noite. Para onde?” ”Pode pegar a Avenida Pedro II e seguir em frente, até passar o Hipermercado”. O carro pôs-se a caminho, enquanto a chuva aumentava. Pouco trânsito, pouquíssimos pedestres. Os limpadores produziam dois borrões em forma de leques, e o carro tinha que avançar com cuidado, rodeando poças e buracos. “Tempo brabo”, disse o motorista. “Pois é”, disse o outro. “Precisa coragem pra sair de casa”. “Na verdade, quando eu saí estava fazendo sol, mas agora tenho é que voltar pra casa”. “Tem razão”. Silêncio durante uma quadra, o motorista avisou: “Gosta de bala de hortelã? Tem um saquinho aí”. “Ah, obrigado”. O homem desembrulhou uma bala, pôs na boca, e comentou: “Trabalhar numa madrugada dessas deve ser cansativo”. “A gente trabalha pelo rádio”, explicou o motorista. “Às vezes fico em casa. Tenho dois rádios, um na sala. Dependendo da chamada, se eu vejo que tem segurança, eu aviso a Central e pego a corrida”. “Ah, entendi”. O homem olhou pela janela, viu um ou outro vulto encapotado apressando-se pelas faixas de pedestres. O cansaço do dia começou a bater e ele entrecerrou os olhos, abriu-os de novo. O motorista percebeu pelo retrovisor. “Fim de um dia de trabalho, não é?” O homem deu um sorriso que lhe entortou a boca. “Trabalho propriamente não. Diversão”. O motorista riu de leve: “Bom, sem querer ser indiscreto, vai ver que o sr. estava lá em Madame Dora.” O homem riu também: “É isso mesmo, conhece o lugar?” “Pego corridas de lá às vezes. É um lugar bem discreto. Andaram fechando umas casas como essas, mas a de Dora continua bem frequentada”. O homem bocejou, espreguiçou-se, recostou-se com os olhos fechados: “Rapaz, tem uma ruiva com um par de pernas... Ave Maria. Só estou voltando pra casa porque minha mulher é um porre. É passar uma noite fora e Dona Encrenca pega no meu pé uma semana. Devia era morrer logo e me deixar em paz.” O motorista ficou calado, depois disse, com leveza: “É, a gente pensa essas coisas de vez em quando”. O outro não respondeu. O carro começou a subir uma ladeira de terra, trepidando, balançando-se. O passageiro abriu com dificuldade os olhos. “Ei,”, disse ele, “isso aqui é o antigo curtume, não é esse o caminho”. O motorista replicou, tranquilo: “É um atalho. Só eu conheço.” O homem afundou-se no banco e ainda conseguiu murmurar: “OK, vá em frente, você é que é o taxista”. “Só nas horas vagas”, disse o outro. “O que eu sou mesmo é taxidermista”. O passageiro já estava roncando, roncava como quem se despede da vida.