sexta-feira, 25 de março de 2011

2513) “Como funciona a ficção” (25.3.2011)



Foi publicado pela Companhia das Letras o livro Como funciona a ficção (“How fiction works”) de James Wood, em que ele comenta a literatura de ficção em capítulos como “Detalhe”, “Personagem”, “Uma breve história da consciência”, “Simpatia e complexidade”, “Linguagem”, “Diálogo”, etc. Seus exemplos são geralmente de autores clássicos (Flaubert, Henry James, Tolstoi, Joyce, etc.) mas também recorre a contemporâneos como V. S. Naipaul, Saul Bellow, Muriel Spark, José Saramago.

Este livrinho me foi muito útil (como leitor e como escritor), porque me fez ver coisas que eu nunca tinha visto, e me fez arrumar no juízo coisas que estavam dispersas e separadas. Ler ficção é interpretar o que está sendo dito, como está sendo dito, por quem está sendo dito, e por que está sendo dito assim. A literatura não é só um diálogo entre o autor e o leitor, é algo mais complexo. O diálogo se dá entre os personagens, entre o autor e cada personagem, entre o leitor, o autor e cada personagem. São consciências que se superpõem, e não faz mal se algumas delas (as dos personagens) são inexistentes, porque o objetivo da ficção (um dos) é justamente nos dar a possibilidade (ou a ilusão útil) de ver o funcionamento de outra mente por dentro, de ver uma pessoa pensando.

O Globo publicou uma entrevista de Wood no caderno “Prosa e Verso” de 12 de março (http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/) e ao lado uma crítica arrasadora de Flora Sussekind, que caiu sobre o livro com gosto de gás. Flora vê no livro uma “dimensão farsesca” e uma “reaplicação anacronizante e redutora (em geral, sem qualquer crédito) de categorias e perspectivas analíticas alheias”. Ela diz que Wood “procura deslizar com estilizada naturalidade, e sem maiores paradas reflexivas, pelas questões da narrativa e teoria da ficção que mal deixa virem à tona em seu texto”. E que nenhum dos processos de análise do texto que Wood aplica foi inventado por ele. Queixa-se de que ele simplifica e empobrece conceitos alheios e não dá o devido crédito aos seus criadores, que ela cita: Eric Auerbach, Chklovski, Wayne Booth, Ann Banfield, Genette, Roy Pascal, Wolfgang Iser, Roland Barthes, Mieke Bal, Dorrit Cohn...

Esta crítica me chamou a atenção porque Flora Sussekind é uma crítica competentíssima de quem já li numerosos ensaios e guardo com carinho o excelente livro O Cinematógrafo das Letras (1987) sobre as relações entre a literatura brasileira e a tecnologia. Sua crítica (por mais justificável que possa ser do ponto de vista acadêmico) me pareceu excessiva. O mundo acadêmico, pelo que sei, é um mundo de saber compartilhado, de instrumentos de análise que depois de criados tornam-se de uso corrente. (Que utilidade teria um instrumento teórico que só pudesse ser usado pelo seu criador?) Wood mostra como a ficção funciona; Sussekind me deu uma lista de nomes para que eu possa aprofundar este estudo. Agradeço a ambos – e recomendo o livro.

2512) Drummond: "Igreja" (24.3.2011)



Nelson Gonçalves cantou, num bolero famoso de Herivelto Martins e David Nasser: “Nas orações que eu faço / eu encontro os olhos teus... / Me deixa ao menos, por favor, pensar em Deus!”. Seria o caso de alguém investigar, na história universal da literatura, qual é a obsessão mais profusamente decantada pelos bardos, se é Deus ou a Mulher Amada. Páreo duro.

Um dos atributos divinos é a onipresença, e grande parte da nossa cultura parece corroborar essa idéia, inclusive na obra dos grandes agnósticos. Carlos Drummond, por exemplo, pertence àquela estirpe dos sujeitos que dizem não acreditar em Deus mas pensam nele o tempo todo, e falam nele sempre que alguém lhes dá uma deixa. Como Jorge Luís Borges, Luís Buñuel e outros notórios incréus, Drummond foi criado num ambiente cristão que lhe deixou marcas. Borges costumava dizer de si mesmo que era o contrário dos argentinos médios: “Acreditam em Deus mas não se interessam por ele, enquanto que eu me interesso e não acredito”. Quanto ao poeta de Itabira, dizia não acreditar, mas o não-acreditamento dele produziu alguns dos melhores poemas sobre Deus do nosso idioma.

Não é o caso de “Igreja”, mais um dos pequenos cartões postais religiosos de que está cheio seu livro de estréia, Alguma Poesia (1930), quando o autor ainda esgrimia contra a crença o florete delicado da ironia modernista. O poema é uma recatada desmistificação das pompas divinas, que na enumeração inicial ele reduz a “Tijolo / areia / andaime / água / tijolo...”, como que equacionando a arquitetura cristã com o frenesi urbanizador que estava, com ímpeto pouco espiritual, botando abaixo a Belo Horizonte de outrora (vide, no mesmo livro, os poemas “”Construção”, “A rua diferente”).

Sem a agressividade de um Augusto dos Anjos (cuja relação com Deus era a de um filho que é rebelde porque receia ser bastardo) e sem a doçura das dúvidas existenciais de um Vinícius, Drummond nessa fase limitava-se a reduzir a religião a uma lista de pequenos equívocos: “O padre que fala do inferno / sem nunca ter ido lá”, “um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e já esquecida”. E ele resume o poema num pequeno quadrilátero verbal: “No adro ficou o ateu / no alto fica Deus”.

Na repressiva criação cristã, o sexo é um boneco de molas pronto para saltar por qualquer tampa que se abra. O poema faz algumas pequenas interferências linguísticas para reforçar essa desmistificação. Quando diz que “pernas de seda ajoelham mostrando geolhos”, a contaminação dos olhos pelos joelhos talvez ficasse melhor se ele tivesse mantido o “j” da palavra original. O sino da igreja, ao bater, ao invés de “Blim blão” ou outra onomatopéia qualquer (Guimarães Rosa não conseguia se decidir entre “Dão-Lalalão” e “Lão-dalalão”), ele reduz o repicar do sino a um “bem bão” bem mineiro. E no final os anjos entoam “quirieleisão”, grafia que sempre quis me sugerir, de maneira solerte, “queria eleição”... Será?