quinta-feira, 10 de março de 2011

2500) A tradução sonora (10.3.2011)





(ilustração: Wolstenholme)



Traduzir literatura é como fazer caricatura. 

Como é impossível reproduzir o original (como reproduzir, com nanquim preto sobre papel branco, um rosto em três dimensões, a cores, de carne e osso, cheios de nuances incapturáveis?), o caricaturista precisa identificar alguns detalhes que “saltam aos olhos” e passá-los para o papel de modo que qualquer leitor olhe aquilo e numa fração de segundo diga: “É Fulano de Tal! Puxa, está igualzinho!”. 

Não, não está igualzinho, perderam-se inúmeros aspectos do rosto e da expressão de Fulano. Mas alguns, essenciais, foram trazidos para o papel de modo reconhecível.

Mesma coisa é traduzir qualquer texto que vá além do “the book is on the table”. E um aspecto que muitas vezes se desdenha é traduzir o som, além do sentido. Porque a expressão literária é feita das duas coisas. O som das palavras (na poesia como na prosa) é uma melodiazinha que faz parte de sua essência. 

Como traduzir, por exemplo, o mero título do poema de Eliot, The Waste Land? Uns dizem “A Terra Sem Vida”, outros dizem “A Terra Devastada”, outros “A Terra Destruída”, outros “A Terra Desolada”; já vi em espanhol “La Tierra Baldía”. 

Talvez “devastada” seja o melhor adjetivo, porque a partícula /vast/ evoca a palavra /waste/ do original; e foi isto que levou Paulo Leminski a sugerir a tradução híbrida “Devastolândia” que é a de sonoridade mais próxima a “The Waste Land”. 

Uma tradução anticonvencional, ousada, que pelo seu próprio exagero caricatural (na sua tentativa de chegar ainda mais perto do som da expressão inglesa) mostra a dificuldade de traduzir sentido e som ao mesmo tempo. 

A principal restrição que se pode fazer ao termo proposto por Leminski é estilística: ele destoa das três palavras comuns e severas usadas no título original, propõe um neologismo surpreendente, e com isto se afasta do tom de voz (toda poesia tem por trás de si uma voz) usado por Eliot.

“Le Bateau Ivre”, o grande poema de Rimbaud, é traduzido em português como “O Barco Bêbado”, “O Barco Embriagado” e “O Barco Ébrio”. As três se equivalem em sentido; mas a tradução mais próxima, para meu gosto, é a terceira, porque “ébrio” tem a sonoridade mais próxima de “ivre” e reproduz, sem forçar o sentido, a melodiazinha do título original.

Reli dias atrás as traduções feitas por Carlos Drummond de algumas canções do Álbum Branco dos Beatles. 

Ele traduz “Blackbird” por “Melro”. Eu discordo, não semanticamente, mas no aspecto sonoro. “Melro” tem também duas sílabas, mas “blackbird” são duas sílabas fortes, explosivas, sendo que “melro” tem uma forte e uma fraca. 

Além do mais, “melro” não é uma palavra tão instantaneamente visualizável. A saída (se não for uma tradução para ser cantada) talvez fosse esquecer o ritmo do original e apelar para o aspecto visual: talvez “Pássaro Preto”, com o /pp/ evocando o /bb/ do termo inglês. 

Dizem os grandes tradutores que toda tradução é perda; mas é preciso, sempre, vender caro a derrota!