terça-feira, 8 de março de 2011

2498) Literatura e joguinhos (8.3.2011)




Os videogames são uma das formas de narrativa mais interessantes inventadas nas últimas décadas. (Neste caso, estou colocando no mesmo saco produtos distintos, como o game de PC, que roda através de um CD-Rom ou DVD, e o game de console, que é plugado na TV e roda com cartucho). Ele é a confluência entre os jogos de mesa-e-tabuleiro como War ou Banco Imobiliário, o cinema de animação e a TV.

Dizem que os literatos e os intelectuais em geral têm preconceito contra os games. Bem, talvez esse preconceito exista “em geral”, mas sei de numerosos casos particulares em que sujeitos sérios (como eu) se afeiçoam a certos jogos e não acham que estão perdendo seu tempo. Nos casos em que o preconceito existe, ele usa, curiosamente, termos parecidos com os das pessoas que não gostam de ficção científica. Ou seja: 1) É coisa de garoto, não de adulto; 2) É coisa de americano, não tem nada a ver com a realidade brasileira; 3) Só trata de guerra, violência, monstros. São verdades parciais, e todo preconceito é alimentado por verdades parciais que alguém transforma em generalizações definitivas. Não importa se um milhão de negros são trabalhadores; basta o preconceituoso ver um negro com preguiça para dizer: “Tá vendo? Todo negro é preguiçoso”.

Sugiro a leitura deste artigo (http://tinyurl.com/6aupee5) no saite da Livraria Saraiva, em que escritores brasileiros jovens (Daniel Galera, Antonio Xerxenesky, Samir Machado, Simone Campos) dão seu depoimento sobre sua vivência com os games e o modo como eles estão sendo assimilados em seus romances e contos.

A grande contribuição dos games é quanto à narrativa, porque eles propõem uma interatividade que a literatura-de-livro só pode oferecer até um certo ponto. Existem games violentos, mas porque o mercado se estruturou assim. E por falar nisso, também existem livros violentos. Assim como temos hoje histórias em quadrinhos adaptando a obra de Proust, nada impede que daqui a algumas décadas tenhamos um videogame do Ulisses de Joyce, em que o jogador passeará por Dublin, terá acesso à infância de Stephen Dedalus, encherá a cara com Bloom num bordel, poderá bisbilhotar as aventuras extraconjugais de Molly... Se houver mercado para isso, acontecerá.

Nada impede que tenhamos um dia um game da Guerra de Canudos, usando material fornecido por Euclides da Cunha, Vargas Llosa, Manuel Bombinho e outros. Nada impede que o Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, possa virar um imenso universo interativo, reproduzindo antigas e novas aventuras. O que era literatura (texto, palavras, frases) pode virar game (imagens, som, movimento, narrativa, interatividade), com alguma perda estética neste processo, mas também com a possibilidade de ganhos estéticos. É irrelevante essa discussão boba de “quem é melhor, a literatura ou o game”. O melhor meio é o que atrai maiores talentos individuais. Já foi a literatura, mas nada obriga que seja assim eternamente.

2497) A Era do Monjolo (6.3.2011)




Nasci no Condado de Gurtz, no ano 2557 da Era do Monjolo. Minha infância foi uma fuga constante em lombo de burro, no temporal ou na poeira, comendo frutas verdes ou carne estragada, meu pai matando um salteador por dia, minha mãe perseguindo coelhos e acendendo fogueiras. Às vezes demorávamos numa choupana o tempo suficiente para que eu me acostumasse ao desenho das palhas no teto, ao som do vento, ao meu cantinho de dormir, o mesmo canto todas as noites, e pensei uma vez que gostava daquele canto como se ele fosse uma pessoa. Nunca demorava muito, porque chegavam os cavaleiros do Khan, archotes em punho, devastando aquela aldeia, incendiando as florestas e cravando cabeças nas estacas. O Khan demonizou nossas vidas até quando, na época da minha primeira barba, conheci jovens rudes e queimados do sol que me levaram para uma reunião numa gruta. Fiquei sabendo que ali se reuniam os inimigos do Khan, que preparavam a sua derrubada. Perguntaram-me se gostaria de me unir a eles. Minha resposta foi puxar a faca que trazia à cinta, cravá-la no chão e ajoelhar-me.

Deram-me um fuzil, um nome novo, e treinamento. Assinei contratos com sangue, bebi pólvora misturada ao álcool, permiti que me fotografassem degolando um desconhecido, ou beijando a mão de um desconhecido, ou na Praça, erguendo um cartaz em língua desconhecida. Unimo-nos em volta dos exércitos comandados pelo Raij, a nêmese do Khan, o homem que jurara cortar sua cabeça pessoalmente e acabar com o terror na península. Possuídos por uma fúria sagrada, chocamo-nos contra os exércitos do Khan em sucessivos combates, até fazê-los refluir para dentro das muralhas da capital. Na véspera do assalto derradeiro, pude entrever o Raij à distância; ele passou em seu cavalo branco, exortando as tropas. No dia seguinte, desfilamos durante horas diante da estaca, à frente do palácio, em que a cabeça do Khan nos esperava, e a música das nossas trompas de caça emergiu das janelas do palácio, onde se debruçavam mulheres como nunca mais vi.

É duro implantar o Bem numa terra que o mal devastou durante gerações. A violência que o Khan propagara morava agora na memória dos aldeões, contaminava sua vida. Assaltos e emboscadas contra as tropas do Raij se multiplicavam. Descobrimos (a esta altura eu era centurião) que a morte do Khan não mudara muito o mundo, e que o Mal era como um monstro que sobrevive mesmo depois de decapitado. À frente das minhas tropas, comandei incursões de Norte a Sul, enquanto meus cabelos embranqueciam e os incêndios empobreciam as florestas. Vi erguerem-se contra nós as tropas andrajosas e mal-armadas dos seguidores do Valoong, o guerreiro envolto em peles de urso que jurou queimar vivo o Raij e seus seguidores. Hoje, à véspera de mais uma batalha, escrevo estas linhas à luz dos archotes, os mesmos que empunharemos amanhã no momento de massacrar outra geração de insurgentes, devastar suas florestas e cravar suas cabeças nas estacas.

2496) Contraintes (5.3.2011)




“Contrainte” (con-TRÉNT): palavra francesa que pode ser traduzida como “restrição auto-imposta”. É quando um artista diz: “Proponho-me a fazer uma obra sem ultrapassar tais e tais limites, ou na qual será obrigatório proceder assim ou assado”. 

Parece um convite à excentricidade, mas a verdade é que toda obra de arte principia por aí. Quem compõe uma música para cavaquinho só pode lidar com as notas que cabem num cavaquinho. 

O crítico Rudolf Arnheim escreveu um dos melhores livros sobre a linguagem do filme, A Arte do Cinema, defendendo com brilhantismo a teoria de que a riqueza da linguagem cinematográfica decorre de suas limitações iniciais: ser mudo, ser em preto-e-branco, ter a imagem limitada pra um retângulo, etc.

Na literatura temos “contraintes” famosa como o formato obrigatório de muitos gêneros poéticos, como o hai-kai, o soneto, etc. E existem aquelas “contraintes” excepcionais, como a de Georges Perec e de Ernest Wright, que escreveram romances inteiros sem usar a letra “E”. 

Fiquei sabendo agora de outra obra que para mim é prova da existência de mais um autor fora-de-esquadro. Trata-se do livro Never Again, de Doug Nufer (http://www.amazon.com/o/asin/0971248567/ws00-20), que parece ser a história de um jogador compulsivo que quer se regenerar. O livro tem uma “contrainte” que é coisa de maluco: como o título indica, o autor se compromete a não mais usar qualquer palavra que venha a aparecer no texto. 

Ou seja, cada palavra só pode ser usada uma vez. Imagine a dificuldade de alguém para omitir as palavras mais comuns da língua (o, a, os, as, um, uma, uns, umas, de, em, para, que...).

O livro começa parecendo um livro normal: “When the racetrack closed forever, I had to find a job. Want ads made wonderlands, founding systems barely imagined”. (“Quando a pista de corridas fechou para sempre, tive que procurar um emprego. Anúncios de ‘procura-se’ projetavam fantasias, criando sistemas que mal se poderia imaginar.”). 

Veja-se que logo no comecinho do livro o autor já queimou algumas palavras essenciais: “When”, “the”, “I”, “to”, “a”. E por aí vai. 

Quando chegamos à página 4, o autor já descarregou todo seu suprimento de conectivos e palavrinhas curtas, e as frases vão ganhando um aspecto assim: “Tilt? Nodded acceptance unclogs processional drainpipe. Headtalk gestures convey protodocuments: workpass, memo allocating stingy directional information”. Lamento, mas não vou perder meu tempo tentando traduzir.

Uma regra como esta pode produzir boa literatura? Talvez não, mas a verdade paradoxal é que a literatura não tem como objetivo apenas produzir boa literatura. A literatura serve para sabermos os limites do que é possível fazer com palavras. “Boa literatura” é uma pequena fatia dessa pizza, a fatia que uma cultura, numa época qualquer, resolve considerar mais significativa ou mais deleitável que as outras. A Boa Literatura é um efeito colateral, e não o objetivo da literatura.