terça-feira, 31 de maio de 2011

2570) O romance de adultério (31.5.2011)



A crítica chama de “literatura mainstream” a corrente principal da literatura, ou seja, o romance realista em geral, que descreve a vida como ela é, os costumes das classes sociais, a existência cotidiana, etc. Em geral, esse conceito é contraposto à literatura dita “de gênero”: o romance policial, de terror, de ficção científica, de faroeste, de humor, etc. Estes seriam gêneros especializadíssimos e que, talvez por isto mesmo, são incapazes de reproduzir toda a complexidade do mundo de hoje.

Mas podemos considerar também que um gênero literário é uma espécie de repetição ritual de temas e situações que por variados motivos nunca deixam de encontrar leitores. O que é o romance de detetive? A história de um crime violento que ninguém sabe como e por quem foi cometido; e de um homem (o Detetive) que consegue interpretar da única maneira correta uma porção de indícios que os outros viram e não compreenderam e prender o criminoso. É a Razão servindo de instrumento para punir a Transgressão. Por motivos variados esse tipo de história nunca deixa de ter leitores. Uns são atraídos pela fascinação da Violência, outros pela conquista do reequilíbrio pela Sociedade, e outros (eu, p. ex.) pelas inesgotáveis manifestações da Inteligência.

Dentro do romance social e psicológico há um subgênero importantíssimo, mas que a crítica não costuma identificar como tal. Eu o chamo o Romance de Adultério: aquele em que uma instituição crucial da sociedade, o casamento patriarcal e monogâmico, é ameaçado pelo comportamento individualista e transgressor de uma ou mais pessoas. Dentro desta rubrica caberiam clássicos como Anna Karenina de Tolstoi, Madame Bovary de Flaubert, O Amante de Lady Chatterley de D. H. Lawrence, Dom Casmurro de Machado de Assis, O Amor Conjugal de Alberto Moravia e milhares de outros. Estes livros são considerados “mainstream” porque ninguém até hoje se mobilizou para defender a criação de um gênero que os abarcasse e que se certa forma “chamasse” a criação de novas obras baseadas neles. Essa criação se dá invisivelmente, dentro do mercado literário que já existe.

É curioso que este tema não tenha sido cristalizado em gênero, como foi o assassinato (através do romance policial). A dualidade casamento/adultério, segurança/aventura, respeitabilidade/transgressão tem sido uma inspiração constante da literatura nos últimos séculos, e gerou obras magníficas como estas que citei acima e muitíssimas outras. Alguns autores retornaram de maneira quase obsessiva ao tema. Machado de Assis, talvez pelo fato de publicar muitos dos seus contos em jornais e revistas voltadas para o público feminino, falou do assunto sob todos os ângulos possíveis. E no entanto a crítica planta firmemente esses romances dentro do território indiferenciado do “romance realista psicológico urbano” ou coisa parecida, quando, para transformá-lo em gênero, bastaria criar uma coleção e formalizar uma teoria.

3 comentários:

Octavio Aragão disse...

Primo Basílio, do Eça, também entraria no rol. E Engraçadinha, de Nelson Rodrigues, seria uma desconstrução desse gênero-que-não-é-gênero?

Anônimo disse...

Braulio, então você acha que realmente existe o adultério em Dom Casmurro? Ou a simples possibilidade de existir o adultério qualificaria o romance nesse sub-gênero?

Anônimo disse...

"What a lovely way to burn!" :)