quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

2440) "O novo regionalismo" (30.12.2010)



(Árido Movie)

Fala-se numa crise do regionalismo literário nordestino, como se nas últimas décadas não tivesse aparecido nenhum autor capaz de se comparar com José Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz etc. A principal razão para isto é a de sempre: não aparece ninguém parecido porque todo mundo quer escrever parecido com eles, e eles não estavam querendo escrever como ninguém. Isto me lembra a frase de Robert Bresson: “Fulano quer imitar Napoleão e se esquece de que Napoleão não imitava ninguém”.

Um dos problemas do regionalismo literário é tentar obedecer em 2010 a uma temática e uma maneira de escrever que se consolidaram por volta de 1930 ou 1940. O maior símbolo disso é a presença recorrente, ainda hoje, dos “beatos e cangaceiros” como os dois grandes fenômenos de massa do Nordeste. Ora, hoje não existem mais beatos e cangaceiros: existem evangélicos e traficantes de drogas. Esta é a realidade do Nordeste de hoje. Essa mudança histórica não invalida a qualidade de, por exemplo, um filme regionalista como Deus e o Diabo na Terra do Sol, mas para se saber do Nordeste de hoje é melhor assistir Árido Movie de Lírio Ferreira, que fala numa seita mística baseada na adoração da água e numa fazenda que substituiu o plantio do algodão pelo da maconha. É mais parecido com hoje-em-dia.

O Nordeste de hoje é isto. O que Graciliano & Cia. escreveram continua valendo como documento histórico e como obra literária de valor permanente, mas para fazer um livro sobre retirantes famintos à altura de Vidas Secas precisa ser mais escritor do que Graciliano foi, porque a comparação é hoje inevitável. Por outro lado, o primeiro sujeito talentoso que escrever um grande romance sobre a praga do crack na Zona da Mata não vai ter concorrentes ilustres com quem ser comparado, porque esse romance não existe.

Um caminho interessante que se abre para o regionalismo nordestino é a exploração de elementos místicos e futuristas, recriando um Nordeste diferente dos clichês habituais. Vejo isto em livros como Pequenas Catástrofes do potiguar Pablo Capistrano, da releitura bíblica de W. J. Solha em Relato de Prócula, do visionarismo futurista do cearense Carlos Emílio Corrêa Lima em Ofos e muitos outros que certamente não conheço. O Nordeste de hoje conserva elementos do Nordeste de Zé Lins, Rachel & Cia., mas superpostos a eles estão novos elementos temáticos que só muito lentamente estão sendo incorporados.

Por que? Acho que é porque o escritor nordestino (a começar por mim mesmo) não conhece o Nordeste. Vive num apartamento, indo de carro para o trabalho, fazendo compras no shopping e de noite lendo romances regionalistas de 50 anos atrás. Conhece o Nordeste através dos livros, e não das BRs. Se pegasse uma mochila e passasse seis meses viajando de ônibus pelo interior, se hospedando em dormitórios e comendo prato-feito, voltaria para cada com doze romances prontos para serem escritos.

2439) "O Ulisses alemão" (29.12.2010)



Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Doblin, o romance escolhido pelo escritor Joshua Cohen para ser o equivalente alemão do Ulisses de Joyce, tem seu nome mais conhecido, hoje, por causa do filme dirigido em 1980 por R. W. Fassbinder, um épico com 14 horas de duração feito para a TV mas também exibido em alguns cinemas. A TV Educativa (RJ) o exibiu em fins de semana consecutivos anos na década de 1980, quando tive a chance de ver um ou dois episódios. Sobre o romance de Doblin, Cohen faz este comentário: “Uma narrativa épica e infatigável sobre o ‘demimonde’ berlinense. Recheado de assassinatos, prostitutas, e o assassinato de uma prostituta. Franz Biberkopf, um sujeito de pouca inteligência, é libertado da cadeia para viver na prisão maior que é a República de Weimar. Doblin foi jornalista, psiquiatra e veterano da I Guerra Mundial. Ele germanizou o olho e o ouvido panorâmicos que James Joyce tinha para captar a gíria das ruas, e ao fazê-lo criou um das melhores romances de decadência do seu século”.

Doblin foi uma figura curiosa nas letras alemãs, porque a sua primeira obra de peso foi um romance ambientado na China do século 18, Os Três Saltos de Wang Lun (1915). Em seguida ele se juntou ao grupo expressionista que agia em torno da revista Der Sturm, onde publicou numerosas histórias, mas logo afastou-se deles para seguir uma linha literária mais personalista, da qual Berlin Alexanderplatz é o melhor exemplo. O nazismo o forçou a emigrar da Alemanha para a França em 1936, e nesse período ele publicou sua trilogia amazônica, ambientada na América do Sul: A Terra sem Morte, O Tigre Azul e A Nova Jângal. Com a invasão nazista ficou algum tempo num campo de refugiados na França, até emigrar para os Estados Unidos, de onde voltaria para a Europa após o fim da guerra.

Numa antologia do conto expressionista alemão, Malcolm Green comenta: “A vida de Doblin exibiu um movimento pendular entre polos opostos: quando jovem psiquiatra, ele aspirava à sobriedade e à razão, mas apanhado pelo caos da vida começou a desenvolver um ponto de vista anti-racionalista. O socialista e ‘grande inquisidor do ateísmo’ dos anos 1920 sucumbiu a um misticismo natural que conduziu a sua conversão ao catolicismo quando no exílio, em 1941”. Seu grande épico berlinense é, de suas obras, a mais conhecida, e talvez a que melhor exprime o país em que nasceu.

Berlim é decerto uma das cidades-entroncamento da história européia no século 20. Mesmo antes de se transformar no símbolo da Guerra Fria após a II Guerra Mundial, a cidade foi nos anos 1920 um bazar de decadência social, caos econômico, criatividade artística e fervura política. O movimento Expressionista, por um lado, no cinema e na literatura, produziu obras notáveis. Por outro lado, o teatro e a poesia de Brecht foram pontos altos da arte política do século passado. Há sem dúvida material para um grande romance na medula desse momento histórico.

2438) A matéria dos sonhos (28.12.2010)




Jorge Luis Borges fala, em seu conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, de um planeta fantástico em que as coisas são criadas pelo pensamento. Por exemplo: Fulano perde uma caneta no escritório e pede aos colegas que a procurem. Depois, percebe que tinha deixado a caneta em casa, mas esquece de avisar. Um dos amigos, movido pela expectativa de que a caneta está no escritório, encontra-a e entrega ao dono, que agora tem duas canetas idênticas. 

Em outro exemplo, ele fala de uma expedição arqueológica em que os trabalhadores recebem uma descrição prévia dos artefatos que se espera desenterrar ali; eles são encontrados, mas sempre com alguma deficiência, devido aos ruídos de comunicação no processo. Encontram, por exemplo, moedas enferrujadas que têm gravada uma data posterior à da escavação.

Oscar Wilde, que muito influenciou Borges, dizia com razão que é mais frequente a vida imitar a Arte do que o contrário. 

Vejam por exemplo o caso do filme O Falcão Maltês, o clássico do filme policial “noir” dirigido por John Huston. O falcão é uma estátua negra que se diz valer mais de 2 milhões de dólares, e pela qual os indivíduos traem e assassinam uns aos outros durante uma hora e meia. 

Era um filme “B”, estreia do diretor (Huston só tinha trabalhado até então como roteirista). Humphrey Bogart, que interpreta o detetive Sam Spade, fez o filme inteiro usando suas próprias roupas, de tão minguado que era o orçamento. Para o falcão foram confeccionadas algumas estátuas de cobre, outras de resina (mais leves). A fabricação de todas elas juntas custou cerca de 700 dólares. 

Estas estatuetas valem hoje cerca de 2 milhões de dólares, ou seja, exatamente o que o falcão valia no filme (e mais, também, do que o orçamento completo do filme). Por que? Contêm jóias, tesouros? Não: contêm (na frase famosa de Sam Spade que encerra o filme) “a matéria de que os sonhos são feitos”.

Todas as riquezas humanas são riquezas simbólicas. Valem porque acreditamos que valem. Um cheque ou uma nota de 100 reais só valem isto por uma convenção, um acordo tácito. O papel de que são feitos não pode valer tanto. 

Os falcões valem porque o filme tornou-se (indiretamente; não foi feito com este propósito) um enorme comercial despertando nas pessoas o desejo de possuí-los, porque se tornaram símbolos de algo famoso. É o nosso desejo que os torna reais, em primeiro lugar, e depois os torna valiosos.

Uma frase famosa de G. K. Chesterton diz que “os romanos não amavam Roma porque ela era uma grande cidade; ela se tornou uma grande cidade porque eles a amaram”. É o sonho nosso que projetamos nas coisas que as faz crescer de importância e de valor. 

A Bolsa de Valores, p. ex., surgiu de início como uma aferição do valor das empresas, e depois virou um sistema de avaliação que depende mais do estado de espírito de compradores e vendedores (seus sonhos, expectativas e ilusões) do que da solidez da empresa em si.







2437) "Drummond: Sentimental" (26.12.2010)



Um dos traços mais curiosos de Carlos Drummond, que se revela tanto nos seus poemas quanto nos vislumbres de sua vida pessoal (entrevistas, depoimentos de amigos, etc.) é a sua capacidade de oscilar instantaneamente entre o funcionário público sério e o menino travesso, um garoto malicioso com veia sentimental. Só para ficar em dois poetas que lhe foram próximos, não vemos com facilidade essa oscilação em Vinícius de Moraes, que aparentava ser só o menino, nem em João Cabral, que aparentava ser só o funcionário carrancudo. Drummond, não. Num estalar de dedos, o Padre Antonio Vieira se transformava em Carlitos. E vice-versa.

“Sentimental” é um poema de Alguma Poesia (seu livro de estreia, que está completando 80 anos) e revela esse lado menino e romântico que ele se divertia em entremostrar, muitas vezes inserindo um poema nesse tom entre dois outros mais circunspectos. “Ponho-me a escrever o teu nome / com letras de macarrão...” Não sei se os supermercados de hoje ainda vendem o macarrão de letrinhas que me divertiu muito na infância, compondo palavras enfileiradas na toalha da mesa, ou, com maior dificuldade, usando a colher para fazer as letras boiarem em fila, já empapadas e amolecidas, no caldo escuro da sopa de feijão. Descobrir na adolescência que O Maior Poeta Brasileiro também fazia isso me trouxe uma bem-vinda sensação de cumplicidade.

É um poema semiótico sobre as dificuldades do amor transformado em linguagem (“Desgraçadamente falta uma letra / uma letra somente / para acabar teu nome!”, “E há em todas as consciências um cartaz amarelo: / ‘Neste país é proibido sonhar’”) e ele reverbera de maneira curiosa num poema posterior de Drummond, incluído em seu livro seguinte (Brejo das Almas). É o poema “As namoradas mineiras”, que mostra um namorado menos romântico, menos sonhador, mais tecnológico e moderno. Esse namorado profissional não enfrenta mais as limitações das letrinhas de macarrão. Ele tem uma namorada em cada um dos 215 municípios mineiros: “Enquanto na Capital um homem indiferente, / frio, desdobrando mapas sobre a mesa, / põe o amor escrevendo no mimeógrafo / a mesma carta para todas as namoradas”. É o contraste entre o artesanato (as letrinhas de macarrão, encontradas e enfileiradas de uma em uma, como nas tipografias manuais do cordel) e o mimeógrafo serializador, a carta-de-amor na era da reprodutibilidade técnica.

No primeiro poema Drummond registra o sonho adolescente do menino que se distrai, brincando de estar apaixonado, durante a ceia. No segundo, imagina a burocratização do amor na vida adulta, o amor do funcionário público, o amor do casamento careta e profissional. O uso da palavra escrita é a ponte entre essas duas fases da vida e duas faces do amor. As letrinhas de macarrão e o mimeógrafo são a face ingênua e a face implacável do Modernismo, um mundo novo que começa com uma aparente liberdade e acaba com massificação