quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

2416) Atravessando o abismo (2.12.2010)


É o único trajeto que ele percorre, às vezes diariamente, às vezes dia sim dia não. 

Nunca deixa de ser, para quem mora sozinho, uma aventura e um pesadelo. Sair do apartamento, descer dois lances de escada, chegar à rua, fazer compras rápidas, voltar para casa. 

Tudo não dura uma hora, mas para Seu Tomás equivale a caminhar num fio esticado entre dois arranha-céus. Oito décadas de ferrugem nas juntas não lhe ajudam os movimentos, e seis décadas de cigarro lhe empedraram os pulmões; mas não é o desgaste físico do trajeto que o faz estremecer. É o que ele se habituou a chamar, consigo mesmo, de Os Altos e Baixos. 

Por exemplo: sair de casa. Ao fechar atrás de si a porta, troca um olhar de passagem, no corredor, com a vizinha do 603. D. Lucíola: seu azedume, suas reclamações, suas fofocas. 

Profundamente infeliz, Seu Tomás se arrasta para o elevador, desce. À sua volta tudo poreja pessimismo e hostilidade. Pensa que se o prédio se incendiasse morreria feliz, vendo-o arder. 

Na portaria, Gilson, magrinho, de óculos, atencioso, lhe estende um envelope que acabou de chegar. O mundo se transforma. É o contracheque da aposentadoria, com seis dias de atraso. Seu Tomás o guarda como se fosse a chave do Paraíso, e é o Paraíso que encontra ao chegar à calçada e se misturar aos transeuntes. Bom dia, calçada. Bom dia, banca de revistas. Bom dia, ônibus lotados, carros, barulho, bom dia buzinas, bom dia vitrines e anúncios em néon. 

O Paraíso avança ao seu redor enquanto ele caminha, mas se fende com brutalidade quando ele se aproxima da banca, vê os jornais dependurados lado a lado como lençóis para secar, e vê o caderno de esportes lembrando a derrota da véspera. E ainda mais com uma manchete sarcástica. E o retrato do artilheiro, que passou em branco, com as mãos no rosto. E a notinha apocalíptica sobre a proximidade da zona de rebaixamento. E o rebaixamento do Paraíso a Purgatório, onde nas almas punge a dor da incerteza, uma dor talvez maior, porque em movimento incessante, que a dor da condenação, que pelo menos é a Paz do Nada. 

Uma noite moral se abate sobre o quarteirão. Seu Tomás desiste de ir à padaria, desiste com tal desânimo que se esquece de impedir que as pernas continuem a conduzi-lo. Não quer ir à padaria. Quer voltar para casa. Agora. Não. Quer deitar na calçada, agora. Quer enrodilhar-se como um cão friorento, como uma minhoca atingida, quer fazer como a serpente mitológica que engole a própria cauda até sumir por completo. 

Mas, ai! – as pernas o trouxeram à padaria, e quem está hoje no caixa senão Donana, a negrinha catita? Quando o vê ela abre um sorriso de dentes alvos e batom rubro. “Seu Tomás! Quem é vivo sempre aparece!” Os peitinhos estão ali, sob a blusa branca e engomada, prontos, quem dera, para qualquer eventualidade. Seu Tomás abre um sorriso, abre a carteira, abre um par de asas, faz a parte publicável do seu pedido, volta pra casa sem tocar o chão.






2411) As Instâncias do Poder (26.11.2010)

(Quando viajo este blog vira uma Casa da Mãe Joana. O artigo abaixo, de número 2411, era para ter sido postado aqui no dia 26 de novembro, quando foi publicado no Jornal. Não foi. Vai agora. Vale a numeração. Perdão, leitores.)



Tudo que o Imperador da Ruritânia faz está a cargo dos chefes de setor. O chefe de cada setor (ao qual chamaremos, de agora em diante, de Primeira Instância) está cercado, em seu vasto gabinete de trabalho, por dez sub-chefes, cuja função é providenciar para que suas ordens sejam executadas, e, em caso de dúvida, auxiliá-lo na sua tomada de decisões. Esses dez sub-chefes formam, portanto, a Segunda Instância. Cada um deles, por sua vez, tem cem assessores encarregados de distribuir tarefas, organizar as coisas. Somados, esses mil assessores formam a Terceira Instância, que constitui de certa forma a interface entre poder decisório/organizatório e a mão de obra encarregada de produzir resultados. Observe-se que cada um dos mil assessores tem a seu cargo mil funcionários.

Ora, sucede que um dia o Chefe do Setor de Diapasão amanheceu com enxaqueca, em plena reta final do Levantamento Estatístico de Afinações, a que cabia um recenseamento das afinações predominantes no Império. Todo ano era preciso contar quantas músicas haviam sido gravadas no tom de dó, quantas no tom de dó sustenido, quantas em ré, e assim por diante. Cabeça latejando, o Chefe, inundado de zeros e percentagens, virou-se para os sub-chefes e disse: “Quer saber duma coisa? Essa situação é kafkeana, dadaísta, ionesca. De agora em diante só se pode gravar música num tom. Sol bemol, por exemplo”. Dito isto, desligou o monitor para poupar energia, desceu para a cafeteria, tomou um tylenol e fez um lanche.

À tarde o videofone tocou. Um dos sub-chefes, o Número Oito, atendeu e disse: “Não, não sei, e não tenho tempo a perder com tecnicalidades. Não é fá sustenido, é sol bemol!” E desligou. O Chefe abaixou o jornal (onde estava conferindo a tabela do campeonato e calculando quantos pontos seu time teria que ganhar para fugir do rebaixamento). Ficou pensativo. Onde tinha ouvido, recentemente, a expressão sol bemol?... Engraçado, depois que uma enxaqueca passa o mundo parece meio irreal. Voltou à tabela.

No fim do expediente ele repassava a última planilha Excel com o recorte regional das estatísticas quando deu um pulo horrorizado e chamou o Número Oito. Este lhe garantiu que sim, a ordem fôra repassada e a esta altura já estaria provavelmente na Terceira Instância. O Chefe se desesperou. “Manda voltar! Era um modo de dizer!”. Depois de hora e meia de atividade febril, concluiu-se que seis dos subchefes tinham conseguido, por motivos vários, cancelar a ordem. Mas quatro deles (logo, eles, os mais eficientes! que injusta é a vida!) já tinham providenciado para que sua Terceira Instância desencadeasse o processo. Não demorou muito para que o noticiário das 19 horas informasse que a nova determinação estava sendo posta em prática em todo o Império, e que o Imperador assinara uma lei regulamentando sua execução. “A culpa é das telecomunicações eletrônicas”, disse alguém. “Tudo ficou fácil demais”.